Com 80 anos recém completos, Ana Mae Barbosa é uma das pioneiras no Brasil do estabelecimento de bases teóricas pedagógicas para o ensino de artes visuais na escola. Ela esteve em Porto Alegre em setembro participando do 25º encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap). Na entrevista a seguir, a professora comenta a recente proposta do governo para reforma do currículo do Ensino Médio. Inicialmente, a medida provisória incluía a retirada de artes, educação física, filosofia e sociologia como disciplinas obrigatórias. Com a enxurrada de críticas, o governo recuou, mas avisou que voltará a discutir o caso na definição da Base Nacional Comum. Para Ana Mae, a proposta é um equívoco por negligenciar o papel da educação artística no desenvolvimento da inteligência:
– É importante a obrigatoriedade de a escola oferecer essa disciplina. É para a escola que ela deve ser obrigatória.
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O que a senhora pensa da proposta de reforma do Ensino Médio apresentada pelo governo, que previa o fim da obrigatoriedade das aulas de educação artística ou como educação física?
Educação física voltou graças ao Faustão, para você ver como é que são as coisas no Brasil. É melhor nomear logo um famoso da televisão para ministro da Educação. Agora, há um problema muito sério nas artes: elas existem desde os tempos das cavernas aos dias de hoje, e os governos são sempre contra. Sempre acham que é um babado cultural, que não tem importância, isso governos de esquerda ou de direita. É raríssimo que um governo ou um deputado, um senador, valorize a arte.
E os governos do Brasil não dão importância à arte na escola?
No Brasil, só houve três casos em que a arte teve a mesma importância que as demais disciplinas. No projeto do Ruy Barbosa, em 1882 e 1883, de ensino primário e ensino secundário; no projeto do Fernando de Azevedo para a reforma educacional, entre 1927 e 1930; e quando Paulo Freire foi secretário de Educação da prefeitura de São Paulo. O resto sempre tentou tirar do currículo. Há um pesquisador da Califórnia, James Catterall, que compila dados de outras pesquisas. Ele fez um trabalho acerca da importância da arte para o desenvolvimento da inteligência, essa medida pelo teste de QI, que é questionável porque não mede toda a extensão da inteligência, apenas os fatores racionais. E mesmo para esse QI a arte é importante. Ele detectou 25 pesquisas cujos resultados comprovam que o teatro desenvolve o QI. Encontrou os mesmos resultados para música e artes.
E como, especificamente, a arte desenvolve a inteligência?
Em primeiro lugar, ali não tem certo e errado, tem mais e menos adequado. Em segundo: estimula o racional e o afetivo, especialmente na adolescência. Garotas e garotos de 15, 16, 17 anos, onde vão fazer a sua formação emocional? Com a arte. Não tem outra área na escola que desenvolva a capacidade emocional das pessoas dessa forma. Outra coisa: percepção visual. Como a minha área é de artes visuais, tenho estudado muito o desenvolvimento da percepção visual, que é importante desde a alfabetização até a inserção no mundo. É importante você perceber o mundo ao redor, ser capaz de desenvolver a capacidade crítica para analisar esse mundo e dar respostas criadoras às necessidades e às críticas que você faz. São três funções fundamentais que são incrementadas pelo ensino da arte: percepção, capacidade crítica e resposta criadora.
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São questões além do conteúdo.
Nos EUA, James Caterall fez essa pesquisa para provar que a arte desenvolve a capacidade racional medida pelo teste de QI. Porque descobriram que durante 10 anos os alunos de Ensino Médio que tiraram os primeiros lugares no SAT, o equivalente ao Enem deles, foram os que tiveram arte no currículo do Ensino Médio. Esse foi o argumento mais importante nos EUA em defesa do ensino da arte, porque também lá ocorreu isso, os políticos atrelarem a educação à economia, então quererem fazer economia com a educação pública. E aqui querem, como sempre, importar minimizando. É como se pensassem: o Brasil é pobre, então vamos importar só metade do modelo. Nos EUA, os alunos do Ensino Médio têm uma cartela de disciplinas e escolhem umas quatro ou cinco a cada semestre, na Inglaterra também, com arte sempre à disposição.
Mas não é essa, em tese, a proposta feita?
Arte não é obrigatória nesse modelo. É importante que seja, para que a disciplina esteja no currículo para escolha do aluno. Eu não sou contra ter um grande número de disciplinas e os alunos escolherem de acordo com os seus interesses. Mas é importante a obrigatoriedade de a escola oferecer essa disciplina. É para a escola que ela deve ser obrigatória.
Mas como coordenar o tempo do estudante com um número cada vez maior de conhecimentos que se pede da escola?
Não conheço país desenvolvido sem turno integral, o aluno chega às 9h30min e sai às 17h. É um absurdo que às 7h30min, às vezes no frio, se jogue a criança na rua para ir à aula. Nove da manhã às cinco da tarde é o horário ideal. E a arte ajuda a criar um ensino ativo. Você nem precisa de grandes espaços, pode trabalhar no pátio. Quanto mais ativa, mais participativa, quanto mais mexer com o corpo, melhor. O teatro na escola seria fundamental para a formação de qualquer pessoa, qualquer profissional. Há pouco tempo, em abril, os senadores aprovaram a obrigatoriedade do teatro, da dança, da música e das artes visuais na escola. E de repente, do Ensino Médio, se retira essa área fundamental para a formação da capacidade de se comunicar. Acho isso tudo de um primarismo e de um desconhecimento brutais.