Por Fraga
Jornalista, chargista e humorista
Num planeta lotado de tagarelas, os que sabem calar têm que ser festejados. E se um desses quietos é o escritor mais admirado do Brasil, nos faz rir desde 1969 e chega firme, forte e feliz aos 80, as palmas pela data querida são merecidíssimas.
Aliás, como o aniversariante nem é tão silencioso assim, a ocasião festiva serve de pretexto pra se desmentir essa quietude. Basta quantificar seu jorro de palavras nas criações escritas ou traçadas. Sem esquecer as que viraram programas de tevê, peças, filmes. Alguém inexpressivo não teria como produzir mais de 80 livros recheados de muito papo.
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Em seus contos e crônicas, o que não falta é diálogo. Seus personagens sempre tiveram muito o que dizer, e o país tem sido todo ouvidos. Tudo no estilo de quem não se leva a sério. Vai ver é um raro tipo de pessoa, dessas capazes de veemência da boca pra dentro.
Para quem acompanha nos jornais a variedade de personagens gráficos, dispensa descrever os seres que falam sem usar balão. Para os aficionados apenas dos textos, talvez uma audição dos seus bichos faça ressoar a língua do autor nas suas criaturas. O timbre é outro, as entonações variam, mas a eloquência é indisfarçável: vem da voz do dono.
Uma coisa é evidente: as Cobras falam pelos cotovelos. Diante do mundo, reclamam; diante da vida, debocham; diante do infinito, filosofam; diante da política, ironizam; diante da crise, reagem. Na praia, no futebol, no espaço, no futuro, na História ou nas grandes obras, cada cobra tá sempre a fim de dar seu recado, de enfrentar antagonistas, de mostrar que sabe sobreviver – se é que aquilo é vida. E embora as situações nem variem tanto, as falas são geniais: até os filhotes, mal saem da casca, já despejam indagações irrespondíveis.
Ao grupo que passa agruras, o autor contemplou habilidades: o Chefe Rienamangê (nada para comer) consegue acalmar em francês os desconfiados da culinária da crise. O Zé do Cinto, eterna vítima dos planos econômicos, apesar do cinto que o estrangula, não deixa de alfinetar seus algozes com sarcasmo. Dudu, o Alarmista, por onde circula, avisa, sobreavisa, reavisa, sempre em altos brados.
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Mark Eting, o marqueteiro político, é brilhante nas suas tiradas. A cobrinha pesquisadora, perguntadora como só ela, é loquaz, tem raciocínio rápido e sabe manipular as pesquisas com argúcia. Já Bubi, o mestre, além de meditar e fazer viagens a outras dimensões, não economiza sabedoria a todos que o consultam.
A Tia Jiboia é mais reflexiva. Compreenda-se: o cochilo da longa digestão impede discursos. As irônicas Cobras futebolistas discutem e brigam, seja com o técnico, seja com a técnica Dona Zé, seja pra dar conta da empáfia do Falcon, o mais vaidoso e arrogante dos jogadores.
Com as aves, LFV dá voz ativa às piores símiles dos homens públicos: na fala do Queromeu, o corrupião corrupto, reproduz a desfaçatez que ecoa no poder. Alves Cruz, o avestruz candidato, é comedido e alheio, mas sempre diz a que veio em cada eleição. Dos menos falantes, Sombrio, o coitado, tem tão pouco a dizer que só pode expressar pessimismo na síntese.
Rex, o latifundiário, tem humor de cão, e raivosamente diz o que bem entende, e estamos entendidos. Sulamita, proeza de solução gráfica – nem um pingo no papel é! – não nega respostas a interlocutores. Leno e Lilian, as traças literárias, acumulam cultura enquanto comentam banquetes. Gertrude, a tartaruga testemunha ocular e auditiva da história brasileira, dá depoimentos que dão o que pensar. Mac, o rinoceronte de raiban, símbolo encouraçado da ditadura, pouco diz, porém seu silêncio tem a contundência dos chifres. Flecha, o caracol mais verborrágico da hq, tem palavreado afiado. Embora machista e arrogante, seduz Shirlei ao final de cada tira.
Há outros personagens menos frequentes, como o rato de laboratório, taciturno mas com noção das experiências que sofre. O sapo Felipe, príncipe amaldiçoado, usa vocabulário reduzido e tom lamurioso, dada a maldição que o mantém enfeitiçado. E ainda as minhocas, de reduzida oralidade, vítimas do desdém das cobras.
Até Deus, que não precisa que falem por Ele, ganha do LFV algumas ótimas falas. Como as cobras provocam o Todo-poderoso, Ele prefere se expressar com raios. Graças ao bom humor de LFV, Deus descarrega lindos e errantes raios.
O Analista de Bagé, incisivo na sua incongruência profissional, solta achados a três por quatro. E sempre acerta em cheio, tanto nos tímpanos quanto nos países baixos. Já a Velhinha de Taubaté verbaliza a derradeira dose de boa fé em governos surdos. Por fim, Ed Mort, capaz de descrever na primeira pessoa suas desventuras.
Conclusão: Luis Fernando Verissimo fala como ninguém. E ouve como só ele.