*Ana Paula Bandeira
Mestre em Comunicação Social pela PUCRS, publicitária e colaboradora do site Ligado em Série.
Lançada em julho, Stranger things é uma produção da Netflix que alcançou um rápido sucesso de audiência. Tão rápido que, em menos de um mês, a série já pode ser chamada de fenômeno cultural, pois dificilmente alguém que transitou pelas redes sociais nas últimas semanas não passou por alguma crítica, releitura ou referência à produção.
Criada pelos irmãos Matt e Ross Duffer, a série começa com o misterioso desaparecimento de uma criança, o que leva a uma investigação policial, ao colapso mental da mãe do garoto, a uma conspiração corporativa e a um monstro que transita entre duas dimensões. Além disso, os amigos do garoto também estão a sua procura, auxiliados por uma menina com poderes mentais.
Leia mais
Cinco referências dos anos 1980 presentes em "Stranger things"
"Stranger things" deve ter segunda temporada, revela ator
"Stranger things": por que a série da Netflix que homenageia os anos 1980 virou queridinha do público
Não é preciso assistir a muitos episódios para identificar as influências das obras de Steven Spielberg, Stephen King e John Carpenter na criação de Stranger things. A nostalgia oitentista está no roteiro, nas referências visuais, na abertura, no núcleo de personagens, na trilha e até mesmo no conteúdo diegético: os ambientes estão repletos de pôsteres como os de Tubarão, A morte do Demônio e O enigma de outro mundo, já que a série também se passa nos anos 1980.
Entre os fatores de sucesso de Stranger things, um deles se destaca: as referências visuais, que emulam cenas de filmes dos anos 1970 e 80 como Goonies, E.T., Conta comigo, Alien, Contatos imediatos de terceiro grau, foram citadas e listadas em muitas publicações de veículos sobre televisão e cultura pop. Um vídeo que coloca as cenas da série ao lado daquelas que serviram de inspiração, hoje com mais de 700 mil visualizações, mostra que esse tipo de conteúdo que encoraja o processo de garimpagem ativa ainda a cultura participativa tão presente nas práticas dos fãs.
Os personagens e a mitologia de Stranger things também estimularam uma série de fan arts e releituras que vêm viralizando nas redes sociais, especialmente na forma de memes e gifs. A própria Netflix tem incentivado esse engajamento através de ações como o gerador de gifs, que permite que as pessoas escrevam mensagens com as luzes que a personagem Joyce utiliza para se comunicar com o filho desaparecido, e como a playlist no Spotify, que reúne a trilha sonora com músicas de Joy Division, The Clash e outras bandas importantes para a época, pois sabe que a circulação desses conteúdos contribui para o aumento da base de fãs.
Mas toda cultura de fãs que está em evidência desperta, inevitavelmente, o nascimento de seu grupo correspondente de antifãs: não demorou para que surgisse a turma do "a série não é tão boa assim", que reclama, entre outras coisas, da falta de originalidade da trama. Porém, é justamente esse o ponto forte de Stranger things: uma retomada do imaginário – e da memória – dos anos 1980 que se preocupa em entregar familiaridade, e não originalidade. Essa familiaridade está materializada nos já mencionados pôsteres, em artefatos como walkie-talkies e na própria ausência de smartphones e de múltiplas telas atuais, promovendo uma volta à era do VHS.
Diferentemente de outras séries que se tornaram fenômenos na cultura de fãs por estimularem práticas como a especulação e o desenvolvimento de teorias (aconteceu com Lost há alguns anos e hoje acontece com Game of Thrones), Stranger things despertou no público uma resposta intensa e positiva que é baseada na memória afetiva e na celebração da nostalgia. É um retorno ao clima de Sessão da Tarde, ainda tão presente no imaginário de uma geração hoje na faixa dos 40 anos, que traz a satisfação daquilo que é conhecido e familiar.
Porém, beber da fonte oitentista não impediu que a série também conquistasse jovens fãs com o clima de aventura e entretenimento despretensioso, com o ótimo elenco (além das crianças que são a alma de Stranger things, Winona Ryder teve a chance de dar novo fôlego para sua carreira) e com um enredo em que a amizade, parte fundamental no espírito dos filmes que servem de referência, tem papel principal e contribui para a ativação da nossa memória afetiva.
Apesar de seguir a cartilha de suas inspirações, a série conseguiu subverter algumas das lógicas consagradas. Um exemplo é Steve, o namorado de Nancy, que representa um tipo de personagem característico das produções dos anos 1980:o "namorado ruim", que tem a função de servir como gatilho para a evolução de seu par e de acentuar o valor do seu rival. Porém, a expectativa em relação ao personagem é mais de uma vez invertida, o que motivou análises como a do site Vulture, especializado em crítica e cultura televisiva, sobre essa quebra de estereótipo.
A conversa sobre Stranger things foi acentuada ainda com a questão do algoritmo da Netflix. Algumas análises defendem que a série foi criada a partir do mapeamento da audiência de clássicos oitentistas e cuidadosamente direcionada ao público através do sistema de recomendações na plataforma (que, vale lembrar, não é uma média de avaliação geral, e sim uma avaliação direcionada a cada usuário). Ou seja, a criação da série partiu da observação de nossos hábitos de consumo e de um trabalho de pesquisa de preferências, comportamentos e análise de dados que foi chamada ingenuamente (e anacronicamente) de "manipulação do público".
Seja fruto de dados reveladores ou de uma mera homenagem a uma década culturalmente relevante, Stranger things impressiona por, em apenas oito episódios, já ter garantido o seu lugar na cultura pop e em nosso imaginário.