Machado de Assis é considerado até hoje o maior nome da literatura brasileira. Negro, nascido em 1839 no morro carioca, de família pobre, neto de escravos alforriados, filho de uma lavadeira portuguesa, estudou em escolas públicas e nunca frequentou a universidade. Já em sua maturidade, reuniu colegas e fundou a Academia Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro presidente. Apesar do reconhecimento ainda em vida, a crítica ao país dos bacharéis é bastante presente em seus escritos. Mas Machado é um caso isolado de negro pobre que ascendeu no Brasil de racismo violento e crescente.
Dados do Mapa da violência do Brasil de 2015 mostram que, quase dois séculos depois, a população negra continua a mais vulnerável. Enquanto as taxas de homicídio na população branca de 16 e 17 anos caíram 16,7% entre 2003 e 2013, as de jovens negros tiveram um acréscimo de 32,7%. Se em 2003 eram assassinados proporcionalmente 71,8% mais negros do que brancos, em 2013 esse percentual passa para 173,6%. No que diz respeito à violência contra a mulher, o Mapa constata que as taxas de homicídio entre brancas caiu 11,9% no mesmo período, enquanto entre as negras o aumento foi de 19,5%. Em Alagoas, um dos estados mais violentos do país, os homicídios reduziram em quatro anos a expectativa de vida entre negros, enquanto entre não negros a perda é de três meses e meio. Nesse mesmo Estado, são assassinados cerca de 17,4 negros para cada vítima de outra cor.
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No Brasil, racismo, violência e pobreza andam juntos. Apesar de a diferença de salários entre brancos e negros haver diminuído em 2015, os negros seguem ganhando, em média, apenas 59,2% dos rendimentos de um branco. Ainda assim, houve uma melhora em relação a 2003, quando a população negra recebia um proporcional de 48,4%. Por outro lado, entre os mais pobres, aqueles que recebem cerca de R$ 130 mensais, o percentual de negros aumentou nos últimos 10 anos, saltando de 73,2% para 76% em 2014. Isso indica que a cada quatro pessoas em situação de pobreza, três são negras.
O tráfico de escravos foi um grande negócio para a coroa portuguesa. No Brasil, os cativos foram tratados da pior forma possível, trabalhando sem parar, descansando acorrentados e recebendo constantes punições físicas. Eram proibidos de praticar suas religiões. A Lei nº 4, de 10 de junho de 1835, permitia a punição com pena de morte aos escravos que causassem ofensas ou constrangimentos ao patrão.
Mais do que uma relação de trabalho, a escravidão fixou um conjunto de valores na sociedade brasileira. O trabalho braçal passou a ser visto como inferior, as vidas negras seguem sendo aniquiladas pela polícia e as religiões de matrizes africanas ainda são perseguidas e desrespeitadas. E a abolição não foi acompanhada por ações para integrar o negro na sociedade, mantendo até hoje um apartheid velado. Em um comercial da Caixa Econômica Federal de 2011, Machado de Assis aparece como um branco, negando aos negros o maior escritor nacional.
Mesmo sofrendo forte resistência entre a população branca, a dívida histórica com os negros é impagável. Políticas de cotas são migalhas em relação ao saque violento e assassino promovido pelo povo europeu que colonizou o Brasil. Como cantaria Elza Soares, quase quinhentos anos depois, "a carne mais barata do mercado é a carne negra".
* Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.