"Dou o nome de violência a uma audácia em repouso apaixonada pelo perigo." (Jean Genet)
A literatura também tem os seus santos. Jean Genet é um deles. Filho de uma prostituta e de um pai desconhecido, cresceu abandonado pelas ruas de Paris até ser resgatado pelo serviço social e adotado por um casal do interior da França. Na Borgonha, ainda bem criança, é pego roubando dinheiro da gaveta da casa dos pais e, por eles, nomeado "ladrão". Condenado aos oito anos pelos pais adotivos, torna-se vítima de uma vida de reformatórios e prisões.
Encontro minha amiga em Paris, a cidade onde nunca estive. Faz pouco tempo que voltou a estudar. Faz oito anos que tornou-se mãe. Há uns oito meses, mais ou menos, começou a perceber a ausência. Se sentia abrindo mão de certas coisas pelas quais não era recompensada. Foi quando começou a ler Jean Genet. Uma tarde, sentada na beira do rio, foi tomada de uma genial ideia. Começaria um novo projeto. Estava excitada.
Ao mesmo tempo em que sentia uma forte atração, também temia a linha de fuga do destino agindo sobre a genética. Entrar no inverno é também sair dele.
O lago ancestral era o seu objeto de pesquisa. No bar de um hotel, reclama serem poucos os professores com os quais consegue se comunicar. Entra em um mundo que pertence a uns poucos dois ou três. Um filho quando mama. Uma criança desconvidada para a festa de aniversario por ser muito bonita. Qualquer centro das atenções que o outro precisa evitar. Sempre esteve onde quis estar, mas agora já não sabe mais.
Foi só na segunda garrafa de vinho que me perguntou por que eu nunca havia estado em Paris. Nunca estive. Talvez jamais estarei. Olho para as ruas da cidade e o tempo se confunde. Volto a pensar em Genet, nas leis da adoção e na maldade dos amorosos.
Longe, a torre brilhava, refletida na umidade dos telhados. Do outro lado da janela fazia um frio que, estando do lado de dentro, era impossível de ser sentido. Pensamos em nós dois, nas nossas trajetórias, tentando encontrar alguma linha lógica que nos tivesse guiado até aquele lugar. A cidade está cada vez mais fria. Atravessamos juntos a parte de baixo do viaduto da Borges forçando uma cegueira. Culpando o costume. Lamentando o fim dos abrigos.
Abro a janela, no meio da noite, e uma família de mendigos dorme debaixo das marquises do outro lado da rua. Olhando do alto, são todos escuros. Mais de dois terços da população de rua é negra ou parda. Olho para Paris como quem não quer lá estar. Descubro um novo sebo. Compro sete livros. Dois volumes do Em busca do tempo perdido traduzidos por Carlos Drummond de Andrade. Primeira edição. Tenho vontade de tomar um chá, mas o São Pedro agora está fechado.
Geheimnis. Inverno é tempo de voltar para casa.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.