O dia mal havia começado a clarear quando 26 homens e mulheres chegaram ao galpão aquecido por uma lareira. Descalços ou usando meias, fariam a meditação da manhã na comunidade onde moram, a Osho Rachana, localizada no limite de Viamão com o extremo sul de Porto Alegre. Eles distribuíram pelo chão de madeira cinco colchões brancos, criando um ambiente perfeito para se sentar com as mãos sobre os joelhos e passar longos minutos imóveis feito estátuas. Mas não foi isso o que aconteceu.
Em vez de um mantra acalmador, música eletrônica em volume alto fez todos sacudirem a cabeça para cima e para baixo, com braços e tronco acompanhando o movimento frenético, expirando o ar pelo nariz com muita força. Depois de fazerem isso de forma ininterrupta por cinco minutos, passaram a gritar, espernear, xingar e soquear aqueles colchões brancos. Estava começando uma versão adaptada da meditação dinâmica do Osho.
Trata-se de um dos momentos mais importantes na comunidade que homenageia o guru indiano Osho (1931-1990). É um estágio importante para os moradores na busca do autoconhecimento, ainda que eles não sejam obrigados a participar – mais da metade não fez a meditação na manhã gelada de quarta-feira. Na Osho Rachana (em sânscrito, criação), há cerca de 70 pessoas que optaram por morar juntas em um sítio de 42 hectares a uma hora de distância do centro de Porto Alegre.
– É tão isolado porque a gente não quer essa energia podre que tem na cidade. Tu dormes um outro sono aqui. Sabes o que é morar em um prédio onde tem 50 apartamentos e 99% das pessoas são frustradas? O que tu ouves? Ouves grito de criança, ouves cachorro, ouves discussão, ouves televisão, menos gente fazendo amor. Se não faz amor, é frustrado, não vem me dizer outra coisa – diz um dos fundadores da comunidade, Prem Milan, que adotou o nome em sânscrito na década de 1980.
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Osho ficou conhecido como o guru do sexo. Pregava que "o orgasmo oferece o primeiro vislumbre da meditação". Na comunidade, o sexo não é um tabu, e muitos moradores mantêm relacionamentos abertos.
– A comunidade é um espaço para viver e resgatar os sentimentos humanos, a capacidade de amar, a capacidade sexual, principalmente, porque é a maior fonte de alegria e prazer. As pessoas fazem amor de verdade, não apenas transam – diz Milan, afirmando que, em vez de uma descarga, o sexo é fonte de energia.
De galinheiro a ofurô
O sítio tem sauna, piscina, lago com tobogã, ateliê, ofurô, campos de futebol e de vôlei, estúdio de música e muito verde. Além de oito casas, há dois dormitórios compostos por bed spaces – espaço onde cabe apenas uma cama, em que a privacidade fica por conta apenas de cortinas. Os banheiros são coletivos: mulheres e homens tomam banho juntos.
A comunidade tem faxineira, mas cada morador precisa dedicar oito horas da semana para mutirões de trabalho, para aparar a grama, cozinhar, cuidar da horta orgânica, tratar as 250 galinhas. Na quarta-feira de manhã, a turma se dividiu entre confeccionar bonecos para uma peça de teatro que encenarão na Redenção e pintar um castelinho que serve como espaço de recreação – há 14 crianças e adolescentes lá. Enquanto passava verniz na parede de madeira do castelo, o engenheiro Vikrant Bersch, 37 anos, destacou que o trabalho é prazeroso na comunidade "porque estão construindo coisas juntos".
Nada debaixo do tapete
Vikrant, cujo nome de nascença é Matias Bersch, estava acostumado a morar sozinho antes de entrar na comunidade, mas ficar só não é algo que lhe pertence mais. Conta que, se a pessoa se isola, logo é procurada por colegas preocupados. Essa proximidade entre os moradores é valorizada pela produtora audiovisual Cibele Toledo, 42 anos, que mora na comunidade há nove anos e criou ali o filho, hoje com 18 anos. Diz que, além de amigos, seu filho teve mais referências de pais e mães – o que não lhe dá nem uma pontinha de ciúme:
– Eu confio no amor. Sinto que hoje ele tem o coração muito mais preenchido.
O segredo do convívio em uma comunidade com sete dezenas de moradores, para a terapeuta de bioenergética Pavita Machado, está em "não deixar nada debaixo do tapete". A primeira palavra que surge quando o grupo é provocado a resumir a comunidade é amizade, então é algo pelo qual todos devem zelar.
– Normalmente, na vida, você se estressa com alguém e isola aquela pessoa. Aqui não, aqui está olhando para a cara dela o tempo todo. É preciso resolver as picuinhas, porque, se você vai deixando, o relacionamento fica superficial – diz Pavita.
Nova casa, novo nome
Morando na comunidade, tem dentista, engenheiro, professora de inglês, enfermeira, artista plástica, massoterapeuta. Parte dos moradores adota um novo nome, em sânscrito, escolhido por outros do grupo. O músico Pramit Almeida, 34 anos, era Eduardo quando morava em Belém (PA), terra que deixou quando descobriu a comunidade. A ideia era ficar seis meses, ou um ano, mas está na Osho Rachana há cerca de uma década. Sente que ali "voltou aos trilhos".
Além de gente de outros Estados, há na comunidade uma portuguesa, uma suíça e uma catalã.
– E um alvoradense – disparam os moradores, bem-humorados.
Ingressar na comunidade não é simples. A pessoa precisa ter realizado trabalhos terapêuticos antes, e o centro de meditação e terapia Namastê, na Cidade Baixa, é o canal. Além do mais, os líderes precisam identificar que a pessoa se encaixa no espírito do grupo – Prem Milan destaca que "xaropão não entra".
Entenda a meditação dinâmica do Osho
A meditação dinâmica do Osho é feita para o homem e a mulher modernos, destaca a terapeuta de bioenergia Pavita Machado. A ideia é não sentar quieto para ficar pensando na conta que tem para pagar ou na briga que teve com o namorado. O guru indiano criou técnicas em que se extravasa o excesso de energia para gerar relaxamento.
A meditação realizada na comunidade é uma versão mais curta do que a original, em que cada estágio dura pelo menos 10 minutos. Prem Milan explica como funciona:
1) O praticante sacode a cabeça expirando o ar com força pelo nariz. A ideia é criar uma "esculhambação" no cérebro.
2) É a hora de gritar, xingar e espernear para "botar todo o lixo que o ser humano virou para fora". Pode-se lembrar de momentos mal-resolvidos e colocar a raiva para fora.
3) A pessoa pula com os braços para cima gritando "hu-hu-hu", com o objetivo de desenvolver sua força, seu poder.
4) Durante outros cinco minutos, fica com os braços levantados em silêncio total para "começar a sentir o corpo de uma forma diferente".
5) A última etapa é a celebração, o momento de harmonizar toda a energia dançando sozinho, lentamente.
Na Osho Rachana, os moradores ainda adicionam ao final do exercício uma música que eles mesmos gravaram, que fala sobre força, e distribuem longos abraços – daqueles com os dois braços e com o rosto encostado no ombro do outro, sem pressa.
*Colaborou Bárbara Müller