Daniel Borrillo
Professor na Universidad Paris II e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica, na França. Autor de Homofobia: história e crítica de um preconceito (Autêntica, 2010)
O atentado cometido na Pulse, a discoteca gay da Flórida, traz à luz, brutalmente, um tipo de homofobia que acreditávamos pertencer a outros tempos. Certamente, sempre houve no Ocidente uma homofobia permanente que passou de norma religiosa a norma jurídica e, mais tarde, a norma clínica. O homossexual foi, assim, perseguido pela religião, pelo direito e pela medicina durante séculos. O pano de fundo teológico que permite ler o massacre de Orlando toma hoje a forma do terrorismo islâmico, mas tem raízes comuns com a tradição judaico-cristã. O Antigo testamento sentencia: "Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles" (Levítico, 20:13); São Paulo, no Novo testamento, diz: "Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas (...) herdarão o reino de Deus" (1 Coríntios, 6:9-10). A história de Sodoma e Gomorra é comum à tradição monoteísta, inclusive à do Islã. O Alcorão também afirma: "Se dois dos vossos a cometerem, castiga a ambos severamente", ou "matai àqueles que cometerem o ato do povo de Lot".
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Contrariamente ao mundo greco-romano, as civilizações monoteístas são caracterizadas pela condenação da homossexualidade, mas têm sido atravessadas por períodos de tolerância. Na literatura e na poesia clássica árabe, é celebrado com frequência o amor entre homens, e em As mil e uma noites lê-se: "Então eu vi sair do barco, no meio dos escravos, um venerável ancião, tão magro e encurvado pelos anos e pelas vicissitudes que apenas assemelhava-se a a um ser humano. O xeique segurava pela mão um jovem muito bonito, realmente modelado no molde da perfeição, ramo terno e flexível, cuja aparência cativou meu coração e agitou a polpa de minha carne".
O principal inimigo do fundamentalismo islâmico é uma cultura muçulmana que coincide com o velho mundo ocidental naquilo que Foucault veio a chamar de Ars erotica. A Pulse representa um estilo de vida que os fundamentalistas odeiam: era ao mesmo tempo um lugar de diversão e um espaço militante frequentado por gays, lésbicas, transsexuais, drag queens, travestis, latinos, gays muçulmanos... A Pulse se chama assim em homenagem a John Poma, que morreu em decorrência da aids, em 1991. Sua irmã Bárbara, cofundadora e coproprietária, queria com essa palavra, pulse ("pulso"), imaginar que o coração de seu irmão seguia batendo.
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Os homossexuais são, com os judeus, os principais inimigos do Estado Islâmico, que aplica as sentenças de morte de formas terríveis. Muitos dos Estados que dizem lutar contra o EI, como Arábia Saudita, punem com morte a homossexualidade, partilhando a violência homofóbica. Ironia da história: muitas das regras que criminalizam os gays no mundo árabe são resultado do colonialismo britânico e não da tradição muçulmana. A homofobia social e de Estado se espalha como um câncer, e jovens muçulmanos que desprezam, perseguem e agridem gays e lésbicas não sabem que, assim, estão destruindo uma tradição secular que permitiu acolher muitos homossexuais ocidentais em países como Tunísia ou Marrocos quando a perseguição era implacável na Europa.
A demagogia de políticos do Ocidente, homens e mulheres, tem instrumentalizado a luta contra a homofobia, que se converte em um combate à minoria muçulmana. Curiosamente, os mesmos políticos de extrema direita que lutaram contra a igualdade de direitos para os LGBT declaram hoje querer proteger essa minoria da barbárie muçulmana. Esta é a armadilha na qual não devemos cair: crer que o Islã é contrário à homossexualidade. Certamente é, mas não mais nem menos do que o judaísmo ou o cristianismo (em todas as suas formas: católicos, protestantes, ortodoxos). Assim como essas religiões têm sido atravessadas por movimentos críticos internos e externos, muitos intelectuais, muitas feministas muçulmanas e associações LGBT árabes lutam por igualdade no seio de sua própria tradição muçulmana, como têm feito e continuam fazendo milhões de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, intersexuais do mundo ocidental para atacar ou fazer evoluir as interpretações católica, protestante, evangélica, ortodoxa e judaica da homossexualidade.
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As principais vítimas do Estado Islâmico e das teocracias islâmicas são os muçulmanos que aspiram à liberdade e, em particular, a minoria LGBT. A implementação de uma estratégia internacional de combate à homofobia nos países árabes deve primeiro ouvir as vítimas para saber como intervir de modo eficaz. É necessário que o direito de asilo com base na orientação sexual seja de fato respeitado, para que os pedidos de proteção política sejam tratados com seriedade pelos juízes das nossas democracias e possam, assim, salvaguardar a vida de centenas de milhares de pessoas provenientes de países árabes que batem à porta dos nossos Estados supostamente gay friendly.