Alexandre Rodrigues é escritor, autor de Veja se você responde essa pergunta (2009) e mestrando em Escrita Criativa pela PUCRS.
Um leitor do futuro pode ter confusão em entender qual era o país em que vivíamos se depender da ficção. Poucas obras, afinal, foram capazes de dar conta da quase inacreditável rede de trapaças na política brasileira atual. Luís Augusto Fischer afirmou em artigo recente que não há, entre os escritores brasileiros (ele abre uma exceção para Leite Derramado, de Chico Buarque), um bom romance crítico às elites econômicas ou políticas.
Duas obras, no entanto, merecem ser destacadas. Uma é Habitante irreal, romance de Paulo Scott de 2011. A outra, Anchietanos, episódio dirigido por Jorge Furtado em 1997 para a extinta série A comédia da vida privada, da TV Globo. Ambas à sua maneira, lançam luz no mergulho da política brasileira no inferno moral.
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Apesar de Anchietanos ter sido lançado antes, Habitante irreal parte de um momento anterior, a eleição de Olívio Dutra para a prefeitura de Porto Alegre em 1988. É quando, aos 21 anos, Paulo, o personagem, decide abandonar a militância após ir "da idealização completa a um cinismo sem igual, e, por fim, à melancolia escapista". De quebra, deixa uma carreira no Direito para viver em Londres.
A ficção política, marca da literatura brasileira nos anos 1970 e 80, foi praticamente abandonada. Hoje é raríssima, quase sempre tema lateral. Reprodução, de Bernardo Carvalho, para ficar em um exemplo, pode ser uma chave para entender a confusão mental dos comentaristas de internet, mas não é propriamente um romance político.
O começo do romance de Scott, todavia, é. Há uma crítica dura ao PT, partido no qual a "gangue do segundo escalão" dá as cartas. Seus líderes são pusilânimes, e a eleição provoca uma corrida aos cargos. "Gente que até bem pouco tempo, sobretudo na hora do chopinho, fazia questão de dizer que estava ali única e exclusivamente para salvar o Brasil da exploração pelo capital."
É marca de Scott o forte posicionamento político. Em evento recente em Porto Alegre, afirmou, sobre a esquerda e os fatos atuais: "A culpa é nossa. Os conservadores sempre foram assim. Nós que nos aliamos a eles". Mas Habitante irreal não é só um romance político. É também uma belíssima obra sobre não pertencimento com uma desconcertante crítica à maneira como brasileiros lidam com os índios.
Já Anchietanos antecipa o dano que o marketing veio a causar na política. O episódio narra a história de Chico (Murilo Benício), marqueteiro que trabalha para um candidato a prefeito de Porto Alegre envolvido com o tráfico de drogas. Andrew (Matheus Nachtergaele), o adversário, é um ex-colega de faculdade e protótipo de como se apresentava o político petista na época: honesto, meio simplório e propondo um novo modo de governar, a "ética na política".
A estética dos anos 1990 hoje pode causar estranheza, mas a relevância da obra é atual. O roteiro de Furtado, Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase reflete sobre como a imagem veio a prevalecer sobre o conteúdo na política e o fim das ilusões. Tem o brilho de relacionar o cinismo na vida adulta a uma disputa de pênaltis no Colégio Anchieta nos anos 70.
O desfecho vem após um golpe baixo de Chico, que recorre a um antigo vídeo de Andrew (fumando maconha) para derrotá-lo – referência ao notório vídeo que ajudou a derrotar Lula na eleição presidencial de 1989. Uma decisão que lhe custa um amor. Agora, aos 50 anos, é possível que o fantasma a assombrá-lo fosse o Petrolão.