A escola em que Nadia Murad estudava foi também o local em que ela viu quase todos os homens de sua aldeia, Kocho, no norte do Iraque, serem mortos pelo Estado Islâmico. Invadida em 3 de agosto de 2014, poucos dias antes de Nadia completar 19 anos, Kocho teve sua comunidade de 1,7 mil habitantes dizimada em poucas horas. O mesmo se repetiu nas demais aldeias do Monte Sinjar, onde viviam outros milhares de membros da comunidade yazidi – minoria étnica e religiosa de origem curda que professa uma fé sincrética com raízes no zoroastrismo e soma cerca de 600 mil pessoas, concentradas no Iraque, no Irã, na Turquia e na Síria. O destino desses homens, mulheres e crianças só ficou conhecido há pouco tempo, quando sobreviventes conseguiram fugir e começaram a contar ao mundo seus assombrosos relatos. Nadia foi um deles. Desde o final do ano passado, a jovem – hoje com 21 anos – tem se dedicado a lutar pela libertação dos milhares de reféns que continuam sob domínio do Estado Islâmico.
– Eu tinha uma grande família até o EI chegar. Todos vivíamos juntos, na mesma casa. Minha mãe, minhas duas irmãs e nove irmãos com suas famílias. Eu gostava de sair com meus amigos e de ir aos casamentos que ocorriam por lá. Era uma aldeia pequena, todo mundo se conhecia – relembra.
Apesar de acompanharem pela TV e pela rede os ataques que os jihadistas realizavam pelo país, a preocupação não alterou a rotina da comunidade, uma vez que as forças de segurança do governo haviam prometido proteção. Naquela madrugada do início de agosto, entretanto, o cenário mudou sem que tivessem tempo de reagir. Membros do Estado Islâmico começaram a cercar o Monte Sinjar, provocando uma tentativa de fuga em massa das comunidades locais. Kocho está localizada em uma zona que dificultava o escape, então a única saída foi solicitar ajuda por telefone:
– Imaginávamos que as forças do governo iriam nos ajudar, mas elas nos deixaram para trás.
Poucos dias depois do cerco, os jihadistas entraram na aldeia e encurralaram a população na única escola da região. Os cerca de 700 homens foram enfileirados e executados a tiros.
– As mulheres ficaram dentro da escola, e pelas janelas víamos os homens sendo mortos, inclusive meus irmãos. Os meninos mais jovens foram levados para campos de treinamento, para se tornarem soldados do Daesh (acrônimo em árabe do Estado Islâmico) – conta.
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A seguir, Nadia, suas irmãs, sobrinhas e demais mulheres entre nove e 45 anos foram colocadas em dezenas de ônibus. Sua mãe foi morta.
– A viagem demorou cerca de duas horas. Éramos em torno de 150 mulheres. Eu e minhas três sobrinhas estávamos juntas. Durante o trajeto, só ficávamos tentando tirar os homens de cima da gente, porque eles estavam nos humilhando, nos tocando, nos violentando.
EM MOSSUL, ESCRAVAS SEXUAIS
Chegando a uma das sedes jihadistas em Mossul, Nadia viu crianças e mulheres se aglomerando pelos cantos. Sentadas em bancos e encostadas nas paredes, as mulheres apenas aguardavam. A cada hora, homens do EI selecionavam algumas e as levavam para ser violentadas fora do quartel.
– Em Mossul, nos disseram: "Vocês são escravas, estão aqui de acordo com nossa lei. Vocês estão aqui para serem estupradas e vendidas". Junto com a violência, nos obrigavam a rezar e a nos converter ao Islã. Logo depois, o mesmo aconteceu comigo.
Já no dia seguinte à sua chegada, Nadia foi comprada por um jihadista.
– Esse homem passou a me humilhar todos os dias. Ele me estuprou de forma muito dolorosa.
Dali, passou as semanas seguintes sendo comprada e vendida pelos extremistas. Muitos deles, afirma Nadia, moram nas casas com suas mulheres, que se mantêm passivas frente à situação. Buscando entender o que pensavam aquelas pessoas, em determinado momento a jovem se arriscou a conversar com um de seus compradores.
– Ele dizia que nós (os yazidi) éramos infiéis, que deveríamos ser todos mortos, e que as mulheres deveriam ser usadas. Diziam que estavam fazendo tudo aquilo em nome do Islã.
FUGA FRUSTRADA E PUNIÇÃO
Pensamentos suicidas assaltaram Nadia mais de uma vez. Pular da janela da casa onde era mantida refém foi a saída que ela encontrou em um momento de pânico, no qual buscava a qualquer custo saber o que havia ocorrido com sua família. O preço a pagar foi alto. Ao ser pega por um dos guardas que vigiavam a zona, foi submetida à punição que eles denominam "jihad sexual":
– Ele me mandou tirar a roupa, me colocou em um quarto, e seis homens me estupraram em grupo e me bateram até eu desmaiar. Desde aquele momento, fiquei um tempo sem pensar em fugir. Imaginei que não havia ninguém bondoso em Mossul.
Conforme relatos de outras sobreviventes, quando fogem, as mulheres buscam asilo nas casas de pessoas que seguem vivendo na cidade mas que não apoiam ou se relacionam com o EI. Muitas dessas famílias, entretanto, acabam devolvendo as escravas para o grupo terrorista por medo de serem descobertas e punidas.
Passadas algumas semanas da primeira tentativa de fuga, já na casa de outro jihadista e ainda submissa à rotina de conversão forçada ao islamismo, estupro e humilhação, Nadia viu a sua frente uma nova possibilidade de se libertar. Ignorando as possíveis consequências caso fosse novamente pega, aproveitou um momento em que o homem lhe pediu para "se limpar", preparando-se para ser vendida outra vez, e de novo utilizou a janela como porta para a liberdade. Dessa vez, com sucesso:
– Corri para uma das casas do bairro e dei sorte de a família que morava lá não ser simpatizante do EI. Essa família me acolheu, me emprestou o telefone e pude ligar para o celular de um dos meus irmãos que fugiram antes de o EI entrar na aldeia. Consegui falar com ele, que estava vivendo em um campo de refugiados.
REENCONTRO E ATIVISMO
Com uma identidade falsa providenciada pela família que a acolheu, Nadia conseguiu viajar para o norte do país e ir ao encontro do irmão. Ela viveu no campo de refugiados por cerca de um ano, ao lado de dois irmãos e uma irmã. Eles estavam entre os poucos parentes que reencontrou. Em setembro de 2015, conseguiu asilo na Alemanha, com uma de suas irmãs, Dimal, de 28 anos, outra fugitiva do EI.
– Minha outra irmã também está livre, ela teve sua liberdade comprada. Há pessoas que têm conexões e conseguem comprar a liberdade de outras, eu não sei exatamente como acontece. Ela vive também no campo de refugiados hoje com meus irmãos que sobreviveram.
Estabelecida no mundo ocidental, Nadia Murad se tornou uma ativista que viaja o mundo fazendo campanha para chamar atenção para a tragédia dos yazidis. Contando com a ajuda de outros membros de sua comunidade, ela segue atenta aos recentes ataques no Oriente Médio e na Europa e clama por ações urgentes para frear o crescimento do Estado Islâmico. Sua voz começou a ser ouvida quando, em dezembro de 2015, falou para governantes de diversos países em uma conferência na sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Desde então, tem sido solicitada para dar palestras ao redor do mundo. Pelas redes sociais, nas quais se define como "sobrevivente yazidi da escravidão e do tráfico humano e ativista dos direitos humanos", Nadia compartilha suas iniciativas para lutar em favor da proteção das mulheres vítimas de guerra.
Em meados de abril, a jovem ainda mantinha a esperança de reencontrar parentes desaparecidos, mas temia voltar a seu país. Poucos dias depois de conversar com ZH, recebeu a notícia de que sua sobrinha, assim como outros familiares, haviam conseguido escapar dos jihadistas, mas foram vítimas de uma bomba no trajeto até o campo de refugiados.