De todos os filmes de ficção cientifica a que passei milhares de deliciosas horas assistindo, nenhum fez a minha cabeça como Blade Runner (1982). Baseado em um livro de Philip K. Dick, o filme fascinou uma geração pela estética de futuro, os gigantescos billboards digitais, o tempo perpetuamente chuvoso, um mundo superpopulado por tipos violentos, pobreza, lixo – tudo meio profético – mais uma trilha sonora hipnotizante e, ainda por cima, o Harrison Ford. Eu enxergava tudo isso, como meus amigos, mas só pensava em uma coisa: nos replicantes.
Eles eram seres sintéticos, que os humanos criaram à sua imagem, geneticamente, para funções como acompanhantes, soldados, astronautas. Eram humanos melhorados, mais perfeitos e resistentes; mas, para que não dominassem seus criadores (nós), não podiam se reproduzir e duravam apenas quatro anos. A história centra-se em um grupo de replicantes que se rebela contra esse destino e vai em busca de seu criador para que ele altere o programa. Desde então, seres e órgãos sintéticos povoam minha imaginação. Tendo escolhido biologia e não computação, sempre achei este problema particularmente fascinante: como criar um organismo vivo? Não um robô, uma inteligência artificial – mas um ser feito de matéria orgânica, com DNA como eu e você, apenas... manufaturado?
Bom, o primeiro passo seria entender o que é preciso para ser considerado vivo. Ao nosso redor, existem as mais variadas formas de vida, cada uma delas tradução de seu código genético particular. Em 1995, o grupo do Projeto Genoma liderado por Craig Venter sequenciou pela primeira vez o genoma de uma bactéria capaz de se reproduzir, Haemophilus influenzae. Desde então, a capacidade de sequenciar outros genomas e de armazenar digitalmente toda essa informação cresce exponencialmente. Mas ainda não sabemos o papel biológico de todos os genes de uma célula. Venter perguntou se, a partir da informação digitalizada da sequência genética de uma bactéria, seria possível reproduzi-la totalmente.
Em 2011, o grupo de Venter publicou na revista Science um passo a passo de como transformar uma bactéria em outra, trocando todo o DNA natural por outro genoma completo, “feito à mão”. O trabalho foi saudado como a aurora da vida sintética e sacudiu desde a Casa Branca até o Vaticano. Na semana passada, a mesma revista publicou um novo trabalho do mesmo grupo, desta vez relatando a criação de um ser totalmente novo, com o menor genoma de que se tem notícia. O grupo de Venter recriou in vitro um genoma inspirado em uma espécie de Mycoplasma, com 483 genes, e conseguiu reduzir o numero mínimo de genes para 470, ainda assim garantindo a reprodução celular autônoma. A nova célula foi carinhosamente batizada de Syn3.0 (já tivemos a 1 e a 2.0) e replica-se a cada três horas, contra uma hora de alguns tipos de Mycoplasma, ou 18 horas de outros.
Venter defende que as novas células sintéticas podem ser usadas para fabricar drogas ou alimentos. Versões microscópicas dos replicantes de K. Dick, que podem ser usados para terceirizar funções de outros seres, “naturais”. Pode-se inserir nessas células sintéticas “códigos de barra” genéticos, para diferenciar as duas formas de vida. Esse marco da biologia sintética acontece ao mesmo tempo da revolução tecnológica de editar os genomas através do CRISPR, sobre o qual já escrevi aqui. Por que criar novas células, se podemos hoje transformar facilmente o que já existe? Venter responde com uma frase famosa do grande Richard Feynman: “Aquilo que eu não consigo criar, eu não sei explicar”. Recriar a vida seria a melhor maneira de entender como ela começou, e mais: compreender como se definiu como tal. Aprender a sintetizar organismos vivos, cada vez mais complexos, esclarecerá o mais obscuro dos mistérios. Empresas como a de Venter e as dos cientistas do CRISPR levantam hoje fortunas junto a capitalistas de risco. Em um futuro próximo, em vez de sonhar em pedir ao criador que altere o programa, seremos, nós, os programadores?
*Cristina Bonorino escreverá mensalmente no Caderno DOC.