Em uma empresa, é preciso avaliar constantemente se recursos – materiais ou humanos – estão colaborando para os resultados esperados. Essa lógica de gerenciamento empresarial, porém, vem se espalhando para outras áreas da vida, e as consequências disso não são boas. Foi esse o alerta do pensador italiano Nuccio Ordine, em sua palestra A Utilidade dos Saberes Inúteis, proferida no último dia 10 na UFRGS. Ordine ressaltou os efeitos na educação, na qual passam a ter valor apenas conhecimentos com utilidade prática. Saberes “inúteis” como a filosofia, as línguas clássicas, a pesquisa científica básica e as artes em geral têm perdido espaço, por não serem aplicáveis.
Os perigos de orientar a educação com princípios utilitários vão além do surgimento de uma descontinuidade na transmissão do conhecimento humano. Suprimido o espaço para inventar, pensar e investigar sem preocupação com a utilidade, reduz-se a possibilidade de descobertas e criações fundamentais para a humanidade, ocorridas muitas vezes quase ao acaso. Não apenas nas artes e nas ciências humanas é preciso poder pesquisar e produzir sem a exigência de resultados práticos, mas também nas ciências exatas, para as quais a fantasia e a curiosidade são fundamentais.
Essa lógica da administração também tem ganhado terreno nas relações pessoais. Seja no networking, essa construção de relações para galgar degraus na carreira profissional, seja em prescrições de como se tornar desejável para potenciais parceiros amorosos. Se não se alcançou o sucesso no trabalho ou no amor, é apenas porque ainda não se aprendeu a técnica certa. Daí a proliferação de manuais e treinamentos que prometem todo tipo de realização, de casamentos blindados a pensar como milionários.
É sintomático que haja atualmente uma terceira categoria nas listas de livros mais vendidos, além das antigas “ficção” e “não-ficção”: autoajuda e espiritualidade. Nela, boa parte mistura a linguagem da administração com as de outras áreas do conhecimento humano, tomando destas o que é supostamente útil para tornar-se mais eficaz e desejável no trabalho ou no amor. O título de um dos livros mais conhecidos desse nicho, lançado há 80 anos e ainda hoje entre os best-sellers, é exemplo do caráter utilitarista nas relações: Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas.
Essa “manualização” da vida faz eco aos ideais de nossos tempos, que sonham corpos e mentes como máquinas, com recursos otimizados e sem desperdícios. O que nos torna humanos, porém, é que nos dedicamos a coisas supérfluas – como ir a museus, ler livros ou plantar flores. Psicanalistas acrescentariam a isso sintomas, desejos e “maus hábitos”, que insistem apesar de tentarmos nos corrigir e adequar: repetimos os mesmos erros no amor, fracassamos ao nos aproximarmos do sucesso, paralisamos ante medos irracionais. É nisso, porém, que muitas vezes reside o que de mais singular temos.
Uma fantasia contemporânea é a de sermos dominados por máquinas. Não posso falar sobre as possibilidades de isso acontecer, mas creio que esse pesadelo é o avesso do nosso sonho (ou delírio) da máxima eficácia. Defender o “inútil” – espaços livres para criar, pensar e fruir sem fins práticos – é fazer resistência a esse futuro assombroso. Se funcionássemos como pretendem os ideais e os manuais, se tudo o que sabemos e fazemos tivesse utilidade, não precisaríamos de robôs: seríamos nós mesmos a acabar com a humanidade, que reside justamente aí, nessas indispensáveis inutilidades.
*Paulo Gleich escreverá mensalmente no novo Caderno DOC.