*Mestre em literatura pela UFRGS, escritor e autor do romance O Beijo na Parede (2013)
A falta de tato e o descompasso do ator e diretor Claudio Botelho na apresentação Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos causaram tumulto e levaram o compositor Chico Buarque a cancelar a autorização que permitia o uso de suas músicas. No incidente, sábado passado, em Belo Horizonte, Botelho chama a presidenta Dilma Rousseff e Lula de ladrões em um determinado momento da peça. O fato desencadeou uma reação poucas vezes vista nos teatros, pessoas gritando as palavras de ordem "não vai ter golpe" e abandonando em seguida a sala.
No vazamento de um áudio, é possível ouvir Botelho proferir frases violentas e tidas como racistas. Ao ser questionado sobre a frase "Um ator que está em cena é um rei! Não pode ser peitado. Não pode ser peitado por um negro, por um filho da puta que está na plateia", Botelho se defende: diz que não foi racista, que usou o termo "nego", para designar "qualquer pessoa", e que "não iria dizer 'um loiro' porque isso não é gíria". Parece difícil a sustentação desse argumento. Mesmo que a intenção tenha sido essa, é preciso levar em conta que uma palavra, quando dita, nunca vem sozinha. Uma palavra é ela e o seu contexto. Vem acompanhada de uma sonoridade, de um tom e de uma situação específica. Um ator, que é uma pessoa ligada ao texto, sabe ou deveria saber que toda palavra carrega uma historicidade.
De fato, a palavra "nego" ou "nega" tem sido utilizada frequentemente pelas pessoas de forma afetiva ou indicando um sujeito qualquer. Entretanto, a expressão "nego" surgiu durante a comercialização dos negros no século 17 e era usada principalmente para humilhar os escravos, buscando uma despersonalização e servindo para desumanizá-los.
Com o passar do tempo, a palavra tomou novos significados e, por isso, há os que questionam se não há um exagero do politicamente correto. No caso da gravação, é possível ouvir a expressão "um negro", o que demonstra uma intenção de marcar a questão racial e não uma despretensiosa expressão popular.
O filósofo francês Roland Barthes (1915-1980) afirmou que "a língua é simplesmente fascista", pois, segundo ele, carrega sempre um jogo de servidão e poder. A liberdade, diz Barthes, se encontra fora da linguagem. Como nossa comunicação está atrelada a ela, a única solução é fazer literatura. No entanto, quando a ideologia se sobrepõe ao discurso estético, temos um resultado raso e panfletário. Foi o que parece ter ocorrido no improviso feito pelo ator no meio da peça. Botelho errou a mão porque não soube avaliar o contexto, foi contrariado e, quando se viu acuado, expôs o discurso de ódio que tem tomado conta do país nos últimos meses.
O politicamente correto não garante que o racismo ou qualquer tipo de preconceito seja evitado, porque o problema não é a palavra em si, mas o contexto. Também é uma ilusão acharmos que a lei que criminaliza o racismo seja a nossa grande solução. É importante que denúncias sejam feitas e que a vigilância seja permanente – nenhum ato de racismo deve ser tolerado. Mas as leis não deviam ser o nosso último recurso moral, pois elas operam na racionalidade e desconhecem a subjetividade dos indivíduos. As leis não dão conta da complexidade humana. Uma lei não entra no coração das pessoas. Se a língua é fascista e violenta, precisamos afagar o signo linguístico, já diria Barthes. E afagar o signo reside em nos aproximarmos afetivamente das palavras. Desse modo, discutir se determinadas expressões são racistas não é uma questão de ser chato ou politicamente correto, mas é demonstrar cuidado com as pessoas. E estamos carentes de cuidado. Em tempos de ódio, parece que a nossa melhor saída é a transgressão pelo afeto.