*Doutor em Filosofia, professor do IFSul/RS e Prêmio Educação RS (Sinpro/RS).
A capacidade de dar resposta aos desafios de uma era de mudanças constantes e profundas é o principal objetivo da Educação neste início de milênio. Mesmo nos países mais bem colocados nos rankings internacionais, como a Finlândia e a Coreia do Sul, o debate é intenso, sendo a reforma da Educação uma prioridade nacional. No Brasil, 60º colocado no ranking da Unesco, a preocupação com o tema se reverte em questões de base, cujo avanço é condição necessária para garantir, ao menos, o direito a uma Educação com aceitável qualidade. Uma dessas questões é a discussão sobre uma Base Nacional Curricular Comum (BNC), ou seja, um corpo de objetivos de aprendizagens comuns às nossas escolas.
É fácil notar a necessidade de debater o que deve ser ensinado na escola. Que conteúdos são os mais relevantes? Por quê? Hoje, os professores e as escolas têm ampla autonomia para decidir, embasada em lei. A determinação final do que será ensinado, o Plano de Aulas do professor, geralmente atende a exigências tais como as avaliações externas de agentes públicos (como a Prova Brasil), à expectativa do público atendido (como "entrar na universidade") e às condições reais, efetivas e concretas, da escola e dos alunos. O resultado é que, em um país de tantas desigualdades como o Brasil, nas escolas menos favorecidas faltam subsídios ou parâmetros para a construção de um currículo que possa se reverter em um aprendizado de qualidade. Uma BNC pode, então, nesses casos, ser um grande avanço para corrigir essa desigualdade, sendo um instrumento de apoio ao professor e à gestão escolar.
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A controvérsia da educação
Contudo, há riscos nessa implantação. Ao determinar uma base comum, há a possibilidade de - apesar da intenção democrática da proposta - haver uma imposição "de cima para baixo" de o que deve ser ensinado ano a ano. Um caso particularmente sensível se encontra em História: não se prevê na BNC conteúdos anteriores ao século 14. A intenção, de fato louvável e certeira, é colocar em evidência outras raízes de nossa identidade, não europeias, especialmente a africana e a ameríndia, mas é altamente questionável se esse é o melhor caminho. A parte diversificada do currículo, prevista ao lado da base comum, deveria dar conta dessa carência? Há o risco de a BNC ser tomada como contendo os únicos conteúdos a serem ensinados e não como um ponto de partida para orientar a construção do currículo escolar.
O debate sobre o currículo, sobre o que deve ser ensinado é, portanto, fundamental. O MEC tornou pública a proposta por meio de um portal (basenacionalcomum.mec.gov.br) que merece elogios. É bem construído, amigável, apresenta materiais de apoio, de forma que parece realmente intencionado a promover o debate que se requer. Até 15 de março, todos podem dar suas sugestões sobre a proposta elaborada pelo corpo de 116 especialistas envolvidos. Porém, a declarada intenção democrática esbarra na incerteza sobre os critérios para tais sugestões serem acatadas ou recusadas. Corre-se o risco de milhares de manifestações em um sentido serem desconsideradas por não serem consideradas "relevantes" para os especialistas. Esse processo poderia, e deveria, ser mais aberto.
Finalmente, há a questão: o que for aprovado realmente "vai pegar"? Será que as escolas conseguirão implantar tal currículo? Certamente, em alguns casos sim, mas em outros, não: há várias carências em um grande número de escolas, de modo geral no ensino público e especialmente no estadual. A condição sucateada de muitas escolas, carentes de recursos e pessoal, somadas a profissionais esgotados e sem um salário adequado, chega a tornar heroico que muitas delas ainda abram suas portas. O resultado é assustador: segundo o INEP, apenas 11% dos alunos do ensino público terminam o Ensino Fundamental com aprendizado adequado em Matemática. Sem uma boa política salarial - que se reverta em mais tempo livre para o docente - e melhora na infraestrutura das escolas, toda formação de professores e reformas educacionais tendem a causar um impacto modesto. Todavia, mesmo que a adoção da BNC não seja suficiente para reverter esse quadro, um maior detalhamento do que se espera que os alunos aprendam em cada disciplina, ano após ano, sem dúvidas ajudará os profissionais das escolas mais vulneráveis. Vale participar do debate.
O que mais poderia ser feito? Se for observada a ponta do processo de inovação na Educação, é consenso a necessidade de formar, acima de tudo, pessoas capazes de aprender por conta própria ao longo da vida. Isso significa que, talvez, um caminho importante a ser trilhado é usar o espaço escolar para ensinar os alunos a estudar, por exemplo. Isso significaria uma mudança de perspectiva sobre como trabalhar com os alunos em sala de aula, o professor em algumas ocasiões ajudando os alunos a aprenderem por conta própria a lição do dia. Iniciativas como essa, praticamente sem custo e adequadas ao dia a dia das escolas, tendem a ter um impacto maior, e mais resultados, do que reformas como a curricular - penosa, pesada, polêmica. Independente do currículo, é preciso estimular o protagonismo dos estudantes: esse parece ser o melhor caminho para formar pessoas com a autonomia tão perseguida pelos educadores mundo afora, pois, em um mundo desafiador, mais do que saber conteúdos, os alunos precisam saber o que fazer com eles.