Cineasta, diretor de Língua: Vidas em Português (2002) e Betinho: A Esperança Equilibrista (2015)
"A sala de cinema vai parecer um circo, cinema de laser, holografia, cinema espacial, teatro das imagens, das telas múltiplas, a pintura eletrônica. Acabou a coisa do filme projetado. Tela é para televisão. Cinema será o chamado circo tecnológico. O governo e as empresas privadas vão ter que construir estas salas. Então no Ceará, no Maranhão, vão ser abertos os maracanãs eletrônicos, visuais."
Glauber Rocha
Quando soube do incêndio no Museu da Língua Portuguesa, a primeira impressão foi a de um acidente grave com alguém da minha família ou um amigo. Larguei o roteiro que escrevia, e vi as chamas no segundo andar devorando a Grande Galeria. Em transe numa forma de cinema ao vivo, senti ou projetei na fumaça misturada à chuva, as imagens que construí com Carlos Nader e Marcello Dantas, e muitos outros, num longo e elaborado processo de trabalho. E chorei, como previsível para um bom afro-luso-brasileiro.
Um tempo antes, era lançado Língua, Vidas em Português, filme guiado pela apropriação da língua por diferentes culturas do mundo. O documentário tinha uma epígrafe que dizia "todos os dias, 200 milhões de pessoas sonham em Português, algumas delas estão neste filme." Participar da criação coletiva do Museu da Língua Portuguesa, inaugurado em 2006, era erguer um espaço onde centenas de milhares de espectadores atravessariam uma revelação: entrar na dimensão imaterial da língua e da sua ligação profunda, miscigenada e mutante com as culturas africanas e ameríndias.
A reação que o filme causou, influenciando o que a escola e a universidade ensinavam como Língua Portuguesa no Brasil, ganhou um sentido permanente com o Museu. Durante quase 10 anos, em plena metáfora da Estação da Luz, transeuntes de muitos sotaques e origens, estrangeiros e brasileiros, passaram a conhecer melhor o seu lugar no mundo.
Três dias antes da tragédia, acabava de ser inaugurado o Museu do Amanhã, do qual também participei, sempre em parceria com a Fundação Roberto Marinho, com o comando de Hugo Barreto. A vitalidade e a permanência destes espaços, neste lapso de nascimento e reencarnação, ficou ainda mais clara. Através do Museu da Língua, do Futebol, do Rio e do Amanhã, a Fundação é responsável por uma intervenção preciosa na cultura contemporânea brasileira, e com eles e outros colegas artistas e técnicos, atravessei essas horas na alegria e na dor.
Noticias redentoras da curadora Isa Ferraz logo apontaram que o acervo digital estava preservado, e o governador do Estado garantiu a reconstrução do espaço. Dois anos depois do incêndio no Memorial da América Latina, esta nova catástrofe alerta para a importância da manutenção de aparelhos culturais. São seres preciosos, e além de construí-los é preciso preservá-los. Num lugar que foi sonhado e planejado para ser recarregável, as únicas portas antifogo do prédio, destinadas a prevenir um incêndio nos servidores, acabaram por salvar o conteúdo imaterial do museu.
Dois dias depois, no Natal, corredores escuros, estação interditada, ecoavam ainda as palavras de Vinicius, "da morte, apenas nascemos, imensamente". Na grande família da língua portuguesa, o que parecia fatal se configura como um acidente grave, com um Museu em coma, e sua sobrevida digital embalsamada esperando para renascer das cinzas. Um legado transumano, pan-histórico, cuja ausência dói fundo no coração do Brasil.
A missão é urgente neste ano que se inicia. Vamos acompanhar as ações e responsabilidades, públicas e privadas, para reerguer em breve o Museu da Língua Portuguesa, este símbolo da nossa diversidade cultural e potência histórica.