Alguns meses atrás, liguei para uma empresa para contratar um serviço de internet e televisão. Ouvi atentamente o que me foi ofertado, repeti ao atendente a lista de produtos e o valor final para que ele confirmasse, e então aceitei. Na fatura, porém, foi cobrado um valor mais alto - o que, lamentavelmente, não foi uma surpresa. Contatei a empresa, que lavou as mãos: eu entendera mal o que havia contratado, a revisão da conta foi negada. Solicitei a gravação da ligação, à qual tive acesso vários dias depois através de um link enviado por carta impressa (sim, acredite!). Comprovando que estava certo, pois a essa altura já duvidava da minha própria memória, acionei a Anatel para finalmente resolver o problema.
Poderia usar esse exemplo banal e cotidiano para falar sobre direitos do consumidor, condição à qual nossa cidadania vem cada vez mais sendo reduzida. Mas não me surpreendo tanto com as artimanhas e mentiras de pessoas e empresas para fazer negócios, operando nas frestas da lei para conseguir o máximo, mesmo que às custas da boa-fé do outro. O que me intriga é que passamos a conviver com naturalidade com essa ética duvidosa. Achamos normal que tentem nos enganar, que tenhamos de estar sempre atentos antes de comprar um produto ou contratar um serviço, que a palavra dita tão pouco valha.
Esse tipo de relação, no qual a palavra falada perde seu valor e mesmo a escrita vem cheia de letras miúdas que desmentem as graúdas, nos torna um bocado paranoicos. Aqueles que estamos mais ou menos antenados partimos do pressuposto de que seremos enganados, e primeiro nos certificamos de todos os detalhes para poder dizer sim - e, mesmo assim, duvidando. Julgamo-nos mais espertos se acabamos vencendo - como me senti no caso da operadora -, mas esquecemos que isso sequer teria de acontecer se a relação com a palavra não andasse tão descuidada.
Não é à toa que os clientes preferidos de muitos vendedores são idosos, como me confessou certa vez um conhecido que trabalhara com telemarketing. Habituados a tempos em que a palavra tinha outro valor, estes são facilmente engambelados a comprar serviços inúteis ou assinar contratos com termos abusivos. Exemplo disso foi a explosão do mercado de crédito consignado, que acabou jogando muitos aposentados em uma bola de neve de dívidas. Também pessoas com menos formação (e, geralmente, menor renda) são alvo de estratégias de venda dúbias, para usar uma palavra generosa.
Valer-se do mais fraco ou ignorante para prosperar parece ter se naturalizado, como se se tratasse de um princípio evolucionista incontestável, a tal lei do mais forte. Mas nossa própria condição desmente isso: se não cuidássemos dos mais frágeis, as crianças, não sobreviveríamos como espécie. O que nos faz humanos é que conseguimos transcender nossa natureza egoísta e violenta para viver uns com os outros. Isso só é possível graças à palavra, esse curioso artefato que presentifica coisas que não estão ali e mesmo cria outras que sequer existem. Dizemos "língua materna" porque o idioma no qual somos criados é como uma mãe - dá origem e forma ao mundo e à nossa subjetividade.
Mas temos maltratado a palavra, como se não tivesse o valor que tem, como se sua imaterialidade se confundisse com inexistência ou pouca importância. O problema é que, agindo dessa forma, perdemos a solidez que ela confere ao mundo e aos laços humanos. Vivemos isso em um crescendo em 2015, com os desmentidos de Eduardo Cunha diante de fatos notoriamente comprovados, ou ao vermos, mês após mês, a presidente descumprir suas promessas de campanha, fazendo aquilo de que acusara seus adversários caso ganhassem. Exemplos mais pessoais e cotidianos abundam, cada um poderia fazer uma extensa lista.
Se me coubesse um desejo para 2016, seria de que pudéssemos cuidar um pouco mais da palavra, pois ela é de todos - e também de cada um. Invenção mais humana e humanizadora de todas, é ela que nos oferece alguma estabilidade no desamparo de nossa sempre frágil condição. Não há como prever o futuro, mas temo que, sem a palavra para nos amparar e oferecer reconhecimento mútuo, não existem boas perspectivas.
* Paulo Gleich escreve mensalmente no caderno PrOA.
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