* Autor de Veja se Você Responde essa Pergunta e do romance Baioneta, em finalização.
Knut Hamsun não apenas apoiou a invasão nazista contra a sua Noruega como foi conhecer Hitler. Após a morte do ditador, escreveu um obituário elogioso. A II Guerra acabou, e os noruegueses, enojados, atiravam seus livros de volta por cima dos muros da casa do famoso escritor. Hamsun, julgado por traição, passou por um sanatório e só escapou da prisão por estar com 86 anos.
A ferida não o impediu de continuar reconhecido mesmo no pior momento como o mais importante escritor norueguês e praticamente o único digno de nota até surgir o gigante Karl Ove, que também não tem fama de pessoa agradável. Quando Knut Hamsun morreu, em 1952, os noruegueses prantearam o gênio e lamentaram o monstro.
Eis um exemplo necessário para lidar com parte da repercussão da morte recente de Júpiter Maçã/Apple. Enquanto o desaparecimento de um dos melhores artistas surgidos nos últimos 25 anos gerou uma onda de comoção entre músicos, jornalistas, amigos e fãs, na internet, outro grupo preferiu criticar a vida pessoal de Júpiter, notadamente boatos sobre violência doméstica. Também foi resgatada de seu passado a canção Estupro com Carinho, dos Cascavelettes, banda da qual Júpiter fez parte, cuja letra diz "Quero te estuprar com muito carinho".
Em poucas horas textões foram escritos no Facebook. Muita gente que confessava não saber quem era Júpiter ou mal o conhecia como o autor de Miss Lexotan agora o odiava. Houve mesmo comemorações pela morte de alguém comparado numa discussão com Pinochet, o ex-ditador do Chile.
É válido discutir a pessoa na obra. Tratava-se de uma figura pública, e é notório que Júpiter fez mal a si mesmo e a pessoas em volta em meio ao abuso de álcool e das drogas. Uma eventual biografia não poderá deixar de investigar esses fatos nebulosos - isso é diferente de dar vazão a boatos e julgamentos prontos. Mas saber do artista não é o mesmo que entender a arte.
É um equívoco julgar a obra de Júpiter Maçã ou de qualquer outro artista com base puramente nas falhas do ser humano que a produziu. Se um artista faz algo condenável - eis o raciocínio - não pode ser reconhecido como um gênio. Mas gostar de um artista não significa aderir a suas ideias políticas ou referendar seu modo de vida. Pensar a arte como mero produto de uma biografia, como propõem alguns, não faz sentido. Essa premissa, criadora até de um suposto gênero de ficção, a autoficção, os autores e autoras que escrevem sobre si mesmos (tem outro jeito de escrever?), não produziria arte se fosse assim. Criar é distorcer e exagerar.
Além do mais, levado a sério, o pressuposto privaria o mundo de desfrutar de parte considerável do melhor produzido na arte dos últimos dois séculos. Pablo Picasso, já velho, se envolveu com uma adolescente de 17 anos. Além do já citado Knut Hamsun, Louis-Ferdinand Céline era antissemita. Ernest Hemingway, meu autor predileto, não era das melhores pessoas. Kurt Vonnegut (Matadouro 5), diz uma biografia recente, levava as esposas ao desespero com tortura psicológica. Paul Gauguin abandonou a família. Jim Morrison (The Doors) em parte do tempo era um imbecil. Francis Ford Coppola, o diretor de O Poderoso Chefão, um megalomaníaco. E Virginia Woolf, grande escritora, deve ser julgada por descrever em sua obra os judeus como repulsivos e sujos e em seu diário reclamar das vozes deles?
A música Estupro com Carinho coloca, todavia, uma segunda discussão, pois foi composta, gravada e lançada como um produto cultural. Uma premissa para condenar o artista é interpretar a letra de forma literal. Júpiter só pode estar falando de si, Flávio Basso, que quer estuprar alguém.
Isso não está claro, é uma interpretação. É o artista ou um personagem? Não há declaração de Flávio Basso ou de Júpiter que esclareça, e a música, até ressurgir agora, vivia esquecida. Numa busca do Google, são apenas quatro as citações, algo esperado diante de um último e importante aspecto: deve um artista aos 47 anos ser julgado por algo que que escreveu aos 17?
A resposta é simples: "não". Um artista evolui. No caso de Estupro com Carinho, a música não se conecta à carreira posterior de Júpiter Apple/Maçã, na qual os arroubos juvenis deram lugar a um artista sofisticado, cuja riqueza musical e psicodelia, quando colocada a serviço da relação homem x mulher, opta por um desconcertante amor romântico, como em Querida Superhist: "Ei, querida/ gosto muito de você (..)/ Ei, querida/ você é demais" ou a melancolia do coração partido na bela Mademoiselle Marchand e seus versos "Recomponho-me sozinho/Existem antiquários hoje em mim".
Mesmo nos casos extremos o mundo é complexo. O trabalho de um artista não é o mesmo que a pessoa do artista. Eis dois bons princípios para discutir vida e obra em termos mais justos e não no Tribunal do Facebook.