Tenho constatado uma nova tendência nas redes sociais: a publicação deliberada de informações comprovadamente inverídicas. Um exemplo bem recente foi um texto sobre a Black Friday, cuja origem seria uma "liquidação" de escravos feita por seus donos no final de novembro para arrecadar fundos para o inverno. Embora a tese juntasse duas críticas bacanas - ao racismo e ao consumismo -, ela não passa de balela. O maior problema, porém, é que quem difundiu o texto, alertado de que se tratava de um boato, decidiu manter a publicação - justificando "acreditar" mais nessa versão.
Não se trata de um caso isolado. Tempos atrás, avisei uma conhecida de que uma notícia que ela compartilhara como fato era de um site de humor. Para meu espanto, ela não apenas manteve a publicação, como também comentou que "como as coisas estão, não duvido de nada". Também já vi muitos compartilhamentos acompanhados de "não sei se é verdade, mas..." ou "não chequei a fonte, porém...". Perdi as contas de comentários em notícias afirmando "não li a matéria, mas acho que...".
Como editores amadores que somos nas redes sociais, muitos têm agido dessa forma - a mesma de que acusam jornalistas da "grande mídia". Publicam apenas o que é de seu interesse, condizente com sua ideologia ou profissão de fé, ignorando ou repudiando o que está em desacordo. As redes sociais facilitam esse tipo de pensamento simplório e manipulador: se concordo, curto e compartilho; se discordo, xingo e bloqueio. Nos grenais da arena gigante da internet, sempre se encontra torcida para acompanhar a ola, por mais disparatado que seja seu grito.
Investigar as vantagens psíquicas da ignorância talvez ajude a lançar luz sobre esse fenômeno. O conhecimento, por mais que se proponha "objetivo", sempre tem uma relação íntima conosco. Fazemos daquilo que sabemos (ou acreditamos saber) uma espécie de pele psíquica, que reveste com palavras e ideias nossa existência. É através disso que interagimos com o mundo, desde quando aprendemos a não por o dedo no fogo até quando precisamos avaliar riscos e possibilidades em uma situação nova. Em certa medida, somos o que conhecemos; e conhecemos somente aquilo que conseguimos incorporar a essa pele invisível.
Há algo de angustiante e doloroso no processo de incorporar novos conhecimentos, pois para enxertá-los nessa pele é preciso fazer cortes, descartar pedaços que acabam se mostrando obsoletos. Toda verdadeira aprendizagem passa por um estranhamento de si mesmo, por um tempo para acolher o novo e sarar as eventuais feridas que foram necessárias para isso. Aprender é um ato que exige humildade, implica reconhecer a insuficiência daquilo que se sabe ou acredita, deixar-se atravessar pelo que vem do outro. Nenhum conhecimento é total e completo: há sempre outras leituras, outros vieses e pontos de vista.
Conviver com essa noção é uma característica de nossos tempos, nos quais somos constantemente bombardeados por informações contraditórias e convocados a interrogar nossas certezas. Lemos e ouvimos isso por toda parte - reveja seus conceitos, mude, abra a cabeça, acolha a diferença. Só que isso não é tão fácil assim: abrir mão do que se sabe ou se acredita pode abalar e ameaçar quem não conta com uma pele mais resistente ou flexível. Quem reage com ignorância ou ódio quando algo o interroga não revela necessariamente mau-caratismo, mas sim medo e desamparo diante dessa exigência de (se) pensar.
A vantagem da ignorância é que ela poupa a energia e o sofrimento psíquico que qualquer processo de pensamento complexo - logo, conflituoso - requer. Optar pela ignorância pode ser uma resposta desesperada a essa angústia, como a criança que fecha os olhos diante de algo que a assusta. É difícil não se angustiar em tempos de violências, cataclismos climáticos, crises financeiras e institucionais. Pensar e tentar compreender, nesse cenário, pode ser ainda mais árduo e doloroso. Mas furtar-se ao pensamento, que só é verdadeiramente transgressor quando transgride a si mesmo, pode ser muito pior. Disso nos lembram os fundamentalismos, religiosos e laicos, sempre à espreita com seu tentador convite à ignorância - inclusive no Facebook.
*Paulo Gleich escreve mensalmente no caderno PrOA.
Leia mais colunas de Paulo Gleich