No livro Patty Diphusa e Outras Histórias, Pedro Almodóvar comenta sobre a sua chegada, ainda adolescente, em Madri, e a compara com Barcelona. Atravessando o oceano na madrugada, a garota portuguesa sentada no assento ao lado também tenta comparar essas duas cidades: "É como se Barcelona carregasse um arquétipo de cidade. Quando penso em Barcelona, penso em Gaudí, entre tantas outras coisas. Sobre Madri, não tenho referência alguma, exceto os bares. Madri são as pessoas". Não vou a Madri. Não vamos. Vou ao Porto. Vamos. Mais precisamente ao São João da Madeira, uma pequena cidade ao norte de Portugal onde um grupo de roteiristas se reúne para aprimorar suas narrativas.
Sempre chego nos lugares mais por chamado do que por desejo. São os lugares que me chamam. Chego a Portugal através de encontros. Nesse caso, um encontro com o Frapa (Festival do Roteiro Audiovisual de Porto Alegre) acabou me levando para longe. Tento explicar para minha companheira de viagem que atravesso uma fase de desencanto com a cidade onde vivo. Um lugar de onde muitos vão embora sem querer voltar. A portuguesa me mostra as suas fotos de Porto Alegre. No celular, há uma pasta toda dedicada aos relógios desligados do centro da cidade. Diz-me ela que, pela primeira vez na vida, desejou ter relógio de pulso. Tinha medo de que, ao sacar o celular para ver as horas, alguém lhe roubasse o telefone. Ela concorda comigo quando digo que "andar em Porto Alegre é sentir medo".
Maria João veio para a Feira do Livro. Pergunto para qual delas, mas a portuguesa reluta em responder. Entendo os europeus quando não querem se mostrar. Olho pela janela do avião. O sol nasce sobre a África. Sobrevoamos Dacar, cidade onde nem eu e nem ela nunca estivemos. Ela me pergunta sobre a diferença entre Porto Alegre e o Rio de Janeiro, por exemplo. Porto Alegre, assim como Madrid, lugar onde nunca estive, é feita de pessoas. Sigo a lógica de Almodóvar. Se o Rio é feito de Corcovado, Pão de Açúcar e Copacabana, Porto Alegre é feita de gaúchos. Ela gargalha. Acha muito engraçado não nos chamarmos de sul-rio-grandenses, mas de gaúchos. "Vocês são um dos poucos povos que eu conheço, que se orgulham de uma guerra perdida".
Agora o avião já sobrevoa a Espanha. Preparamo-nos para nos despedir. Maria João quer saber se existem bons artistas em Porto Alegre. Lembro das fotografias da Chana de Moura e da Tuane Eggers, das poesias da Fran Spohr e das performances da Carina Sehn. Maria João não conhece nenhuma delas, mas anota todos os nomes. Dos gaúchos, a portuguesa conhece o Iberê Camargo, Vasco Prado e Vitor Ramil. "Todos homens", reclama.
Nos preparamos para iniciar o pouso. Os ouvidos doem. Os banheiros estão lotados. Comento sobre o episódio envolvendo a polícia e as participantes da Feira do Livro Feminista, em Porto Alegre. Ainda tento entender a agressão não apenas contra as mulheres, mas também contra um evento literário. "Não é de hoje", minimiza a portuguesa, "Telma Scherer já foi levada de camburão para fora da Feira oficial, na Praça da Alfândega". Quase já não me lembrava desse episódio. Faz tempo, mas não tanto tempo assim. A aeronave toca o solo da Europa. Manobrando, entendo melhor por que Telma partiu de Porto Alegre. Não há como apagar do corpo de um poeta as marcas do camburão, dos flashes curiosos, do não saber para onde se está sendo levado. Dói ainda mais perceber-se isolada de seus pares.
Hoje, posso entender a Telma, mas ainda não sei o que é ser Telma. Também sequer suspeito do que possa ser mulher. "É que o mundo precisa passar urgentemente por um processo de feminização", conclui Maria João um pouco antes de deixarmos a aeronave. Nunca mais nos veremos. Ela tomará um voo para o Porto em uma aeronave diferente da minha. Chegaremos em horários diferentes ao mesmo destino. Quando nos despedimos, sinto vontade de entregar um cartão, de perguntar o seu sobrenome para depois adicioná-la no Facebook, qualquer coisa que mantenha o elo criado no vôo. Nos despedimos sem trocar contatos. Se o acaso nos uniu, que ele volte a agir em função de um reencontro.
Caminhando pelo aeroporto de Madri, volto a pensar em Maria João. Tenho a sensação de que nunca mais a esquecerei. Levo nosso encontro como quem ganha um presente de boas vindas. No pequeno jato da Embraer que decola rumo a Portugal, volto a pensar na natureza dos encontros. Tento entender o que me trouxe até aqui. De novo, lembro do Frapa. Penso no Léo Garcia, nos guris e gurias todos que se juntaram em nome do cinema, e em todas essas pessoas que lutam para manter Porto Alegre viva. Constato que a nossa cidade, por pior que esteja, ainda é feita de pessoas. Sobreviveremos.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente no PrOA.