Educação é tema que costuma aparecer muito em época de campanhas eleitorais, o que significa que raramente podemos debater o assunto seriamente. Entre a demagogia genérica da "prioridade da educação" que todo candidato parece professar e os inócuos projetos de "especialistas" que costumam levar em consideração tudo, exceto a realidade de uma sala de aula, ficamos, de dois em dois anos, reféns de um palavrório irrelevante e aborrecido que, até agora, não levou a mudanças concretas de espécie alguma. No entanto, recentemente, discussões sobre a proposta de uma nova Base Nacional Comum Curricular (BNC) e críticas ao caráter ideológico do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ganharam as páginas de alguns dos principais órgãos da imprensa do país, além, é claro, das redes sociais, sempre borbulhando de polêmicas de vida ou morte. É bem verdade que tivemos episódios tão lamentáveis que exigiriam aqui um daqueles adjetivos tremendos - como caracterizar a moção de repúdio à presença da filósofa francesa Simone de Beauvoir na prova do Enem, aprovada pela Câmara de Vereadores de Campinas? Aberrante? Grotesca? E as reações vulgares e desinformadas ao tema da redação do mesmo exame - violência contra a mulher? Patéticas? Estúpidas?
Pouco importa o qualificativo, tais episódios (e tudo o que eles representam) certamente não despertaram nada além do repúdio de qualquer pessoa realmente interessada nos problemas de nossa educação, e a discussão ganhou efetivamente com as contribuições do sociólogo Demétrio Magnoli e da historiadora Elaine Barbosa, do filósofo e cientista político Fernando Schüler e do psicanalista e professor Christian Dunker. É esse franco debate de ideias, com divergências claras e produtivas, que deve pautar o debate público em uma sociedade aberta, democrática e pluralista.
O problema é que, a julgar por alguns dos argumentos apresentados nessa discussão sobre a ideologização e os propósitos moralizantes de nosso ensino, é possível que estejamos caminhando para o fim da possibilidade mesma de qualquer tipo de debate digno desse nome. Aqueles que fizeram críticas sérias a certo tipo de contaminação ideológica nas provas do Enem, como Demétrio Magnoli e Fernando Schüler, identificaram o problema não na presença de autores identificados com determinada ideologia, mas sim com o fato de suas teses - altamente controversas, frise-se - serem apresentadas como a verdade natural e objetiva que o aluno deve identificar. Ora, diante disso, alegar que "sempre houve" ideologia na educação, como faz Christian Dunker (ecoando velha tese da esquerda) é uma maneira de bloquear o debate: antes os padres e suas carolices, agora os professores ditos "de esquerda", e o mundo segue girando.
Mais grave ainda parece-me ser o caso daqueles que saíram em defesa da Base Nacional Comum Curricular (especialmente o ensino de História) elaborada por "especialistas" (anônimos) para o MEC. Alguns desses especialistas no ensino de História simplesmente redefiniram a inteira natureza da disciplina, afirmando que seus objetivos são "respeito à diversidade, pluralidades étnico-raciais, religiosa, de gênero, etc.". É possível, até mesmo saudável, argumentar em defesa dessa concepção - novamente: muito controversa - do ensino de História, é claro. O que não é saudável é naturalizá-la, tomá-la como a evidente verdade acerca de uma determinada área do conhecimento humano.
Quando o professor Christian Dunker e os especialistas em ensino de História naturalizam a presença da ideologia em um exame como o Enem ou uma concepção (controversa) de ensino, empurram aqueles que divergem deles para o terreno das anomalias - exatamente como os vereadores de Campinas julgaram "demoníaca" a presença de Simone de Beauvoir na prova do Enem. E não há nada de natural ou óbvio em apresentar as posições de um esquerdista radical como Slavoj Zizek como sendo a verdade sobre o que quer que seja. Ainda menos natural é o Estado - especialmente quando administrado por políticos que não sabem a diferença entre Partido, Governo e Estado - determinar que educação moral os estudantes devem receber nas aulas de História. Então, vamos debater de verdade?
*Eduardo Wolf escreve mensalmente no PrOA.
Leia mais textos de Eduardo Wolf