* Astrônomo. Pesquisador senior do CNPq e professor aposentado colaborador do Departamento de Astronomia da UFRGS
Contrariamente aos planetas mais externos do sistema solar, Urano, Netuno e a família dos Plutonídios, que foram descobertos pela ação sistemática de astrônomos, os planetas telúricos, Mercúrio, Vênus e Marte, e os dois gigantes gasosos, Júpiter e Saturno, visíveis a olho nu, formam parte do imaginário coletivo, verdadeira argamassa do corpo social desde os alvores da civilização. Provavelmente, eles sejam os testemunhos mais vívidos da evolução do conhecimento humano e da conflitante relação da civilização com o céu dos deuses e o céu dos astros.
Os primeiros registros das posições de Marte devem-se aos egípcios, no início do Império Novo, por volta de 1.500 a.C. No Segundo Império Babilônico (aproximadamente 600 a.C.) eram feitos registros regulares dos planetas, e os astrônomos conheciam inclusive o movimento retrógrado deste astro errante. A identificação deste planeta com o deus da guerra e da fartura dos romanos deve-se provavelmente à sua cor avermelhada, que deriva da abundância de óxido de ferro na composição da sua superfície, o que lembraria a cor do sangue.
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O fato científico mais importante sobre Marte aconteceu no século 16. A partir das observações desenvolvidas por Ticho Brahe durante quase duas décadas e baseando-se no modelo heliocêntrico de Copérnico, Kepler determinou a distância do planeta em diversas datas e elaborou as leis do seu movimento em torno do Sol: a sua órbita é elíptica, o Sol ocupa um dos focos desta elipse, e o planeta percorre áreas iguais em tempos iguais.
O momento mais favorável para observar a superfície de Marte é na máxima aproximação da Terra, ou oposição periélica, a qual pode ser reconhecida por qualquer leigo - quando o Sol está se pondo no horizonte Oeste, Marte está nascendo no horizonte Leste.
Na oposição periélica de setembro de 1877, o astrônomo italiano Schiaparelli, usando um pequeno telescópio, realizou desenhos da superfície do Planeta Vermelho - uma rede regular de estruturas - que ele cogitou ser uma malha de canais, provavelmente construída por seres inteligentes. Percival Lowell, excêntrico milionário americano que possuía um observatório próprio, comunicou em 1900 ter observado fulgurações com uma duração de uns 40 minutos no planeta que pareciam sinais regulares. O tema alimentou fortemente a imaginação de muitos autores de ficção científica e aguçou a curiosidade e fantasia de milhões de cidadãos até os dias de hoje.
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O ápice desse fenômeno ocorreu no dia 30 de outubro de 1938, pelo pânico que produziu a transmissão da Guerra dos Mundos, adaptação dramática da obra homônima de H.G. Wells, apresentado como noticiário ao vivo por Orson Welles, em Nova York. Em um caso de histeria coletiva, milhares de pessoas, confundindo ficção com realidade, abandonaram prédios e locais públicos, fugindo aterrorizados, sem saber para onde ir, certos de estar sofrendo uma invasão por parte de habitantes do planeta Marte.
Não que não houvesse trabalhos mais objetivos que os de Chiapparelli prévios a ele. Em 1666, Cassini disse ter observado a calota polar norte. Em 1719, Miraldi observou as calotas polares e a variação na sua extensão. Conclusões precisas sobre a existência de atmosfera e a sua baixa densidade foram obtidas por Herschell durante uma ocultação de estrelas, por Marte, em 1784. As tempestades de poeira também foram observadas no início do século 19 por Flaugergues, porém interpretadas só como "variações de brilho na superfície do planeta".
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Como a precisão das observações e interpretações dependem fortemente da qualidade óptica dos telescópios, o telescópio Hubble tem contribuído com fotografias magníficas que podem ser encontradas no seu site. Porém, um salto qualitativo na pesquisa do Planeta Vermelho foi atingido com as sondas espaciais. Geografia, geologia, hidrologia, climatologia e estrutura interna são estudadas cada vez mais com maior precisão. Sabe-se hoje que as calotas estão constituídas de gelo de água, mas este está coberto por uma camada de gelo seco que tem 8m de espessura no polo sul e evapora quase totalmente no polo norte durante o verão marciano. O ano marciano dura 687 dias e a inclinação da sua órbita de 25,2° (a da Terra é de 23,3°) faz com que as estações durem aproximadamente o dobro do que as da Terra.
Atualmente, há cinco sondas explorando Marte, a primeira foi a Mariner 4, em 1965. O solo do planeta contem 33 litros de água por metro cúbico, embora em forma combinada. A descoberta anunciada pela Nasa no último dia 28 evidencia que a água flui em forma recorrente durante a primavera e o verão marcianos, nas ladeiras de algumas montanhas do planeta (foto acima). Esse fenômeno, conhecido como "Recurring Slope Linea" ("Sulcos Recorrentes de Encostas"), não entendido totalmente, foi desvendado graças a um profundo trabalho computacional que começou em 2011, sobre as fotografias da região, realizados por Lujendra Ojha, imigrante nepalês pós-graduando na Universidade Técnica da Georgia, sob a orientação de Alfred McEwen. Apesar da água existente nas regiões polares, essa descoberta mostra que as condições para a vida encontram-se espalhadas em outras regiões de Marte e podem servir de suporte para futuras missões tripuladas.
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Lujendra, o jovem "Luju", é um ex-roqueiro de 25 anos e define-se como um "homem dos sete instrumentos". Além dos trabalhos junto à NASA, pesquisa terremotos no seu Nepal natal. Quando perguntado pelos jornalistas sobre essa diversidade de atividades, e em particular sobre aquela tão especializada, ele respondeu: "Com o profundo conhecimento de que sou corpo e mente unificados, compostos de poeira estelar, não estou fazendo ciência. Estou apenas tentando entender a minha gênese".
O que demonstra que por trás de um roqueiro pode existir um grande cientista. Afinal, não era David Bowie que perguntava, nos anos 1970, se havia vida em Marte?