Tão antiga quanto o próprio casamento, a infidelidade conjugal ainda não saiu de moda. Seja nos devaneios de donas de casa leitoras de Julia ou nos affaires meticulosamente planejados e executados em "horários de reunião", essas escapadas são ingrediente corriqueiro do matrimônio burguês. A tentação é tamanha que Deus dedicou dois mandamentos para coibi-la: não cometerás adultério e não cobiçarás a mulher do próximo (marido será que pode?). Cada um lida como consegue com esse contrato, que obriga a amar e desejar uma mesma pessoa até que a morte - ou o divórcio - os separe.
Nos tempos das facilidades internéticas de comunicação, a velha pulada de cerca acabou também recebendo um upgrade. Se alguns optam pelo caminho mais sutil de curtidas e cutucadas até chegar a uma eventual conversa inbox, outros vão direto ao ponto através de sites e serviços de encontros. Apostando nesse filão (onde há desejo, bem sabe o capitalismo, há jeito de ganhar dinheiro) foi criado o site Ashley Madison, autodeclarado líder mundial para encontros extraconjugais. O serviço vende a possibilidade de encontrar parceiros afins de eventuais encontros ou affaires, com a privacidade necessária a essa transgressão.
Tudo parecia ir bem nesse éden virtual dos amantes até que, em julho deste ano, um grupo de hackers invadiu o site, ameaçando publicar na internet dados confidenciais - entre eles nomes e conversas de assinantes - caso o site não encerrasse suas atividades. Ante a recusa, o grupo vazou, em agosto, vários gigabytes de informação roubada. Houve quem se valesse desses dados para fazer extorsão, pregação de moral ou simplesmente fofoca. Mas alguns, como articulistas do site Gizmodo, aproveitaram para tentar entender o que os dados revelavam sobre esse universo guardado a sete chaves.
Uma descoberta, nem tão surpreendente, é que a grande maioria dos usuários do serviço são homens. Mas outra, um pouco mais inusitada, revelou a estratégia do site para angariar mais assinantes pagantes: havia programas ("robôs") que usavam perfis falsos para contatar homens, fazendo-os crer que Ashley Madison era um harém de mulheres disponíveis e interessadas. A tática não é nova no mundo: muitas "casas noturnas" se valem de semelhante artifício para vender drinks superfaturados. A novidade é que, neste caso, não eram belas moças as sedutoras, mas sim robôs programados por engenheiros.
Isso mostra como o desejo muitas vezes puxa o tapete de nossa suposta racionalidade - afinal, muitos caíram na sedução dos robôs. A fantasia, que sustenta o desejo humano, segue sendo habilmente manejada para os mais diversos fins por aqueles que dela entendem - como as prostitutas, os publicitários ou, neste caso, os programadores. A fantasia é um dos principais atrativos das relações extraconjugais: é muito mais fácil que um desconhecido a sustente do que aquele com quem convivemos diariamente, com suas tão humanas falhas e manias. Aliás, assim como na era pré-internet, a maioria dos affaires fica no âmbito do flerte e da fantasia, não vai às vias de fato.
O caso Ashley Madison também revela que não há (quase) nada de muito novo sob os lençóis. Os homens seguem sendo a grande maioria à busca de aventuras, embora estatísticas apontem uma tendência de aumento das mulheres - talvez em virtude de seu desejo sofrer atualmente menos repressão. Apesar de nossa cultura ser um pouco mais tolerante com o adultério, que pelo menos não é mais matéria de código civil, os transgressores são moralmente punidos - tanto que se diz "traidor" de quem deseja fora do laço conjugal. Para tentar evitar sucumbir às paixões mais primordiais, como os ciúmes e a inveja, a maioria segue escolhendo formatos de relação em que desejar alguém além do parceiro, mesmo que só na fantasia, é interditado. Como a culpa acaba muitas vezes potencializando o desejo, isso nem sempre funciona.
A internet tem escancarado muitos fatos em relação ao desejo e à intimidade que normalmente ficavam confinados às quatro paredes, sejam as do quarto ou as da cabeça, obrigando-nos a nos havermos com eles. Se o mundo de fato virar uma aldeia global, como vaticinou Marshall McLuhan, que tipo de habitantes seremos? Voltaremos a agir como aldeões mexeriqueiros e vigilantes da vida alheia, para evitar encarar o que não queremos saber de nós mesmos? Ou conseguiremos, talvez, ser mais responsáveis com o próprio desejo, encontrando outras formas de lidar com ele que não a ignorância, a repressão e o enclausuramento em formas pré-definidas?
*Paulo Gleich escreve mensalmente no caderno PrOA.
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