Setembro é o mês em que comemoramos, os brasileiros, o aniversário de nossa Independência. Para os gaúchos é ainda o mês da celebração da Revolução Farroupilha, esta outra luta que trilhou caminhos de independência interrompida, bloqueada, mas que ocupa, assim mesmo, permanentemente o nosso imaginário, a nossa ficção e que, lá de trás, desde um passado quase bicentenário, parece sempre querer se imiscuir em nossas apreciações de precários presentes e em nossos vislumbres de pouco animadores horizontes futuros. Ambas as datas, o 7 de setembro de nossa Independência nacional e o 20 de setembro do início da luta dos farrapos, já desenvolveram suas mitologias próprias. Dos livros românticos e nacionalistas do século 19 ao espírito de revisão crítica da identidade nacional dos modernistas na primeira metade do século 20; das criações populares que povoaram as práticas e a mentalidade dos gaúchos desde os mil e oitocentos às criações literárias como o capitão Rodrigo Cambará, de Erico Verissimo; muito do que pensamos, quer no registro nacional, quer no local, passa por essas elaborações históricas e literárias, hoje já tão indistintas quanto a realidade mais direta e imediata que experimentamos sendo gaúchos e brasileiros sem maiores reflexões na cabeça.
O ano de 2015, contudo, trouxe-nos um inesperado setembro para insistirmos em celebrações. O Rio Grande do Sul viu-se novamente diante da necessidade de parcelar os pagamentos de seus servidores (com pagamentos iniciais de miserabilíssimos R$ 600) e não dispõe de um governo que demonstre as mínimas condições de elaborar uma saída ousada e eficiente o bastante para sair da crise. Com salários picotados, servidores humilhados e uma administração pública sem grandes perspectivas, não é de se espantar que o tradicional entusiasmo com as condições de nosso Estado saia claramente abalado, mesmo com nossas belas comemorações culturais.
Problemas econômicos do Brasil têm origem na tensão política
O mais surpreendente para mim, no entanto, foi o triste e revoltante espetáculo do desfile de 7 de setembro em Brasília. Além de amargar os piores índices de popularidade da história do Brasil democrático, de ter fraudado politicamente uma campanha eleitoral apenas para manter-se no poder e executar, de maneira errática e incompetente, uma versão piorada daquilo mesmo que acusava em seus adversários e de ver suas campanhas eleitorais no centro de acusações multimilionárias de corrupção, Dilma Rousseff protagonizou o gesto mais melancólico de seu segundo mandato nesta celebração da Independência do Brasil: a covarde instalação de um vergonhoso muro de placas de aço que segregaram a população da festividade oficial. Revoltados com um governo incompetente e corrupto - dois males que parecem se espalhar por setores da oposição, igualmente -, perplexos com a dimensão da destruição do patrimônio brasileiro promovido pelos partidos do poder e com o desmoronamento de nossa economia, que passado, que valores, que instituições estariam os brasileiros celebrando naquele 7 de setembro?
Quando primeiro me perguntei isso, confesso que não soube responder. Lembrava o tempo todo do exemplo de homens como John Adams ou Thomas Jefferson, dois dos grandes nomes da Revolução Americana que levou à independência dos Estados Unidos. Adams, o principal articulador da Independência na Filadélfia, foi um homem capaz de defender, em um processo legal, as tropas inglesas no Massacre de Boston (1770) em nome da primazia do direito e da lei sobre as paixões políticas; jamais dedicou-se à causa americana por um ímpeto doutrinário ou por reles ambição pessoal; lutou, pagando o preço frequente da impopularidade, para que os Estados Unidos fossem uma nação governada pelas leis, e não pela vaidade e pelos caprichos transitórios dos homens. Adams e os homens de sua geração legaram valores e instituições às gerações seguintes, e foi sobre essas bases que os Estados Unidos foram construídos.
De pronto, comecei a pensar em nossos exemplos brasileiros. O lugar comum de que não temos razões para orgulho é flagrantemente falso. Mas confesso que em vez de pensar na grandeza de um estadista como Joaquim Nabuco, o grande abolicionista, ou na façanha inigualável da prosa de um Machado de Assis ou dos versos de Carlos Drummond, não conseguia parar de pensar no exemplo de meus amigos professores que cumprem sagradamente a tarefa de ensinar de verdade; no caso do médico que recentemente operou, com sucesso, meu pai, cumprindo exemplarmente seu dever; nas pessoas que vejo todos os dias e que possivelmente não leram Nabuco ou Machado, mas levam suas vidas dignas, amam suas famílias, cultivam seus amigos, prezam a liberdade e buscam a felicidade. Adams e Jefferson lançaram as bases de um país para elas. É para essas pessoas - para nós - que devemos lutar pelo nosso.* Eduardo Wolf escreve mensalmente no PrOA.
*Eduardo Wolf escreve mensalmente no PrOA.
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