Grandes revoltas frequentemente são deflagradas por pequenos incidentes. A tensão em geral já vem fervilhando há tempo, mas é preciso um evento mobilizador para que a coisa pegue fogo. A antropóloga indiana Deena Vas cunhou o termo "eventos críticos" para descrever esse tipo de fenômeno.
Um exemplo interessante ocorreu justamente na Índia, no período em que ela estava sob o domínio britânico. Este começou em 1600, com a Companhia das Índias Orientais, que procurou estabelecer o monopólio do comércio com várias regiões do subcontinente indiano. A presença do Reino Unido cresceu tanto que, em 1859, o país foi incorporado à coroa britânica e a Rainha Vitória foi transformada em Imperatriz da Índia.
Os britânicos, além de explorarem as riquezas da Índia, acreditavam que sua presença tinha uma missão civilizatória em relação aos "nativos", que eram vistos como tendo costumes atrasados. Os ingleses não entendiam o sistema de castas, que é parte integral da vida indiana. Eles acreditavam que tinham um papel educativo e para isso começaram a atacar os rituais hindus, considerados exóticos para a sensibilidade vitoriana. No seu afã missionário, tomaram medidas desastradas que tiveram efeito contrário ao desejado. Quando baniram o sati, a imolação das viúvas na fogueira funerária de seus maridos, a consequência foi o aumento dessa prática.
Dominação colonial implica presença militar - e a Inglaterra não tinha soldados em número bastante para controlar todo o território indiano. Em 1857, havia 40 mil soldados britânicos no país, contingente insuficiente para dominar todo seu território e população. Foi preciso recrutar indianos para serem soldados, comandados, é claro, por oficiais britânicos. Os ingleses treinaram e constituíram um exército de 200 mil soldados indianos, conhecidos como sipaios.
Nessa época os britânicos começaram a utilizar em todo o mundo o rifle Lee-Enfield. Sua munição precisava ser carregada manualmente. Para tal, era preciso morder a ponta engraxada do cartucho, de forma que os fabricantes usavam banha de boi ou de porco. Na Índia há uma intensa religiosidade. Os dois maiores grupos religiosos são justamente os hindus, para os quais a vaca é um animal sagrado, e os muçulmanos, para os quais o porco é um alimento interditado.
É fácil imaginar como a obrigação de morder os cartuchos engraxados indignou os soldados de ambas as religiões. No começo de 1857, pequenas rebeliões começaram a irromper em toda a Índia. A reação do comandante-em-chefe das forças britânicas, general George Anson, foi afirmar que jamais cederia a esses "preconceitos animalescos" e recusar-se a fazer qualquer tipo de concessão.
As rebeliões foram crescendo, e os soldados encarregados de vigiar os presos voltaram-se contra os oficiais britânicos e libertaram seus compatriotas. Regimentos inteiros se aliaram ao que foi chamado de "O Grande Motim", massacraram famílias britânicas e sitiaram cidades. Os ingleses se vingaram enforcando os prisioneiros ou amarrando-os diante do cano de canhões que eram disparados. Finalmente, em julho de 1858, foi assinado um acordo de paz, depois da morte de 11 mil britânicos e muito mais indianos.
A era do colonialismo se encerrou depois da II guerra mundial, sendo substituida primeiro pelo imperialismo e, mais recentemente pelo que se chama de globalização. Os fast foods são um exemplo do último fenômeno. Poderia se imaginar que as pessoas e as instituições aprendem com a história. Mas a insensibilidade às diferenças culturais continua.
Em 2001, dois empresários hindus nos Estados Unidos processaram a McDonald's por usar banha de boi no preparo das batatas fritas que vendia na Índia. Depois de incidentes em que lojas dessa companhia foram atacadas em Bombaim, a empresa admitiu que não tinha fornecido "informações completas" a seus clientes, pois tinha utilizando uma "quantidade insignificante" de gordura de boi como "flavorizante" quando começou a usar gordura vegetal. Hoje, as lojas da McDonald's na Índia enfatizam a "pureza" de seus óleos vegetais e oferecem inclusive refeições veganas.
Conversa para boi dormir e hindu consumir
* Ruben George Oliven escreve mensalmente no PrOA.
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