Qualquer guarda florestal sabe que um caminhão parado em beira de estrada nem sempre é sinal de falha mecânica. Em 1942, um desses servidores, o alemão Heinz May, trafegava em companhia do filho por uma estrada perto de Lodz, na porção da Polônia ocupada pela Alemanha mas não anexada ao III Reich. A certa altura, foi obrigado a parar por um veículo de "quatro metros de comprimento por dois metros de altura" que havia saído parcialmente da rodovia. "Um cheiro definitivamente desagradável vinha do caminhão e das pessoas a sua volta", recordou May anos mais tarde, referindo-se aos policiais que avistou. Dias depois, seu filho soube que as autoridades estavam reunindo judeus locais e levando-os em viaturas. O veículo que avistara era um "caminhão de gás", precursor sobre rodas das futuras câmaras da morte. May ainda não sabia disso, mas sua conclusão foi precisa: "Não havia mais a menor dúvida de que coisas terríveis, coisas jamais vistas antes na história humana, estavam acontecendo lá".
Líderes europeus estavam reunidos em Viena na quinta-feira quando um caminhão frigorífico abandonado à margem de uma autoestrada na província de Burgenland, no extremo leste do país, chamou a atenção de agentes. No compartimento de carga, foram encontrados 71 corpos em avançado estado de decomposição, incluindo os de quatro crianças.
- Isso nos faz lembrar que precisamos enfrentar rapidamente a questão migratória, dentro de um espírito europeu, de solidariedade - disse a chanceler alemã, Angela Merkel, presente à cúpula em Viena.
"Questão migratória", para Merkel, "pior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial", segundo Dimitris Avramapoulos, chefe da União Europeia para Migração, e "ataque à vida", nas palavras do papa Francisco: uma tragédia de proporções históricas está batendo à porta da Europa. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), pelo menos 300 mil pessoas chegaram este ano à Europa pelo Mediterrâneo. A maioria parte da Líbia, vinda de países como Síria, Afeganistão, Paquistão e nações da África subsaariana.
- A migração tornou-se uma questão de segurança na Europa. Isso é um equívoco tremendo. A causa da pressão migratória são as desigualdades regionais. As pessoas estão buscando uma vida melhor. Desde a década de 1990, porém, todo o enfoque das políticas migratórias foi deslocado para os aparatos de segurança. Com o fim da Guerra Fria, as instituições policiais daquela época se aproximaram do campo migratório para continuar a funcionar - afirma Guilherme Mansur Dias, doutor em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Enquanto a chanceler alemã invoca o "espírito europeu" e lembra que examina neste momento 800 mil pedidos de refúgio e asilo, em outros países do bloco as respostas são mais cruas. A Hungria está construindo uma cerca de 175 quilômetros na fronteira com a Sérvia. Na quarta-feira, Budapeste afirmou ter recebido um número recorde de migrantes em um só dia: 3.241, sendo 700 menores. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, diz que o país é um baluarte europeu contra a invasão de pessoas de "diferentes raízes civilizacionais". Na Eslováquia, o governo afirma que aceitará apenas refugiados cristãos.
As preocupações não se restringem ao sul do continente. Na quinta-feira, o governo britânico informou que o saldo migratório (diferença entre estrangeiros que chegam e britânicos que saem) atingiu um recorde. Um total de 636 mil pessoas imigrou para a Grã-Bretanha entre março de 2014 e março de 2015, 84 mil a mais do que no mesmo período precedente. Ao mesmo tempo, 307 mil britânicos emigraram, uma queda de 9 mil. O saldo, de 329 mil, nunca havia sido atingido antes. A pressão anti-imigrantes é um dos trunfos eleitorais de agremiações como o Partido Independente da Grã-Bretanha (Ukip, na sigla em inglês), que prega o desligamento britânico do clube europeu.
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Grande exportadora de seres humanos ao longo da história, a Europa está espremida entre a massa de refugiados e as tendências atávicas de seus próprios cidadãos. Segundo reportagem da mais recente edição da revista britânica The Economist, "alguns olham para as banlieues francesas varridas pelo crime ou para cidades suecas segregadas como Malmö e veem um futuro que desejam evitar".
Como em todo debate sensível, as diferenças chegam ao plano discursivo. O premier britânico referiu-se a um "enxame de migrantes", e a oposição trabalhista advertiu-o de que "fala de seres humanos, não de insetos". Afinado à tradição gastronômica de seu país, o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy comparou em junho a onda migratória a "uma canalização que explode e transborda para a cozinha". Já o ministro da Defesa Civil da Grécia, Yannis Panoussis, referiu-se à crise como "bomba de retardo".
- Temos a impressão de que estamos falando de uma praga de gafanhotos ou de um vazamento de água, e isso mantém a ideia de que a chegada dessas pessoas é um desastre - lamenta Eve Shahshahani, da ONG cristã francesa Acat.
A disputa está até mesmo na opção pelos termos "migrantes", tido como positivo, ou "refugiados", com conotações dolorosas num continente que conviveu com 60 milhões de deslocados ao final da II Guerra. O Acnur sugere o uso de ambos os termos, considerando que "deve ser feita uma distinção entre as pessoas que fogem de guerras e perseguição, os refugiados, e aqueles que procuram trabalho ou uma vida melhor, os migrantes"