* Doutor em Comunicação Social (PUCRS) e conselheiro fiscal da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI)
Na edição de 2 de agosto deste caderno PrOA, o colaborador Jorge Barcellos, doutor em Educação, aproveitou a polêmica em torno do website Tudo Sobre Todos, que oferece ao mercado dados pessoais de cidadãos brasileiros, para iniciar uma oportuna discussão sobre o direito à privacidade. Embora concorde com vários pontos levantados pelo Dr. Barcellos, sou obrigado a observar que, ao comparar os serviços do Tudo Sobre Todos com a divulgação nominal dos salários de servidores públicos em portais de transparência, ele recai na falácia da falsa analogia.
Leia o artigo de Jorge Barcellos: Por que nossos dados não nos pertencem mais
O articulista, com razão, vê ambos os casos como exemplos de um problema ético introduzido pelo desenvolvimento da internet e a facilitação do acesso à informação sobre pessoas jurídicas e físicas. Também está correto em apontar no armazenamento de dados sobre cidadãos, sejam eles servidores públicos ou não, o desejo de controle social por parte de governos e mercados. É preciso, de fato, analisar e debater as consequências do monitoramento eletrônico para a cidadania de maneira lúcida, evitando a ingênua noção de que a tecnologia seria neutra, desprovida de substrato ideológico. As semelhanças entre os dois casos, no entanto, se resumem a estes pontos.
Ele mesmo um servidor público, Dr. Barcellos critica a divulgação nominal de salários da Câmara Municipal como invasão de privacidade equivalente à perpetrada pelo website Tudo Sobre Todos. Todavia, a divulgação destes dados no portal de transparência da Casa do Povo não pode ser considerada invasão de privacidade porque, no limite, a sociedade como um todo é a empregadora destes funcionários e proprietária das informações pertinentes ao desempenho de suas funções. Isso inclui os dados sobre seus vencimentos, que podem e devem ser controlados por todos os cidadãos, pois compõem a res publica.
É claro, esta exposição não é isenta de contradições. O ideal seria preservar o direito à privacidade dos servidores públicos. Esse direito, porém, vai de encontro aos princípios de transparência e impessoalidade que devem reger as burocracias estatais. Em especial, vai de encontro ao direito do contribuinte verificar como o Estado usa o dinheiro dos impostos. A meu ver - e também na opinião, materializada em decisão de abril de 2015, do Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição, inclusive do artigo referente à garantia de privacidade - o benefício coletivo da divulgação dos salários de servidores deve prevalecer sobre o direito individual a manter os dados pessoais sob sigilo.
Também não é verdade, como afirma Dr. Barcellos, que este tipo de banco de dados público seja a principal fonte de informações das quais serviços como o Tudo Sobre Todos se aproveitam. Atualmente, o armazenamento e venda de dados pessoais é um dos principais esteios de qualquer negócio que se relaciona diretamente com o consumidor. Operadoras de cartão de crédito, clubes de benefícios, serviços de correio eletrônico, redes sociais, comércios on-line ou off-line: todas estas atividades têm nos dados de seus clientes ao menos uma fonte de receita complementar, quando não seu principal ativo. É virtualmente impossível consumir numa sociedade digitalizada sem ser monitorado por uma empresa ou um governo. Os portais de transparência pública são, evidentemente, mais um insumo para estes negócios, mas oferecem em contrapartida um benefício social.
A Lei de Acesso à Informação prevê o acesso de todo brasileiro a dados e documentos produzidos pelo Estado e, em que pese a insatisfação de muitos servidores públicos com a divulgação nominal de salários, ela se tornou um instrumento fundamental para o desempenho do jornalismo investigativo no país. Esta política dificulta, por exemplo, a existência de funcionários-fantasma e contratações por nepotismo. Além de coibir atitudes antiéticas ou ilegais por parte de agentes públicos e representantes do povo, esse mecanismo de transparência beneficia a longo prazo todos os servidores, na medida em que confere uma aura de probidade às instituições que resistem ao exame da imprensa.
Quanto a serviços questionáveis como o Tudo Sobre Todos, a regulamentação do Marco Civil da Internet, peça jurídica aprovada pelo Congresso em 2014 e considerada no mundo todo um modelo a seguir, pode ser um caminho para dar maior eficácia à fiscalização do destino dado por organizações públicas e privadas aos dados pessoais dos brasileiros. A "constituição da Internet" prevê direitos e deveres para o uso da rede no país, inclusive a "inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação", ecoando a própria Constituição Federal de 1988. Quando regulamentado, pode se tornar um instrumento importante para vigiar e punir a violação da privacidade de todo cidadão - inclusive daquela parte da vida dos servidores públicos que se passa fora da esfera pública.
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