Red herring é um método eficaz e antigo para treinar cães de caça. O objetivo do red herring, ou arenque vermelho, em português, é exercitar o foco do cão. Se ele está perseguindo uma raposa, deve perseguir a raposa, e não outros cheiros intensos que possam aparecer pelo caminho. O arenque é um peixe de cheiro forte, cujo sangue é espalhado pelo treinador no espaço entre o cão e a raposa. O cheiro do arenque serve para desvirtuar o cão do rastro da caça. Se deixar de seguir a raposa para seguir o cheiro, o seu faro o levará ao sangue podre do arenque vermelho. Red herring funda o princípio da pista falsa.
É normal ver raposas caminhando nas adjacências de Südstern. Ela contou ter visto uma raposa em uma noite de verão cruzando as linhas do S Bahn. Ficou com medo de que o bicho fosse atropelado, mas era madrugada. "Estar em Berlim é também perder o medo do outro", ela me disse. Há um momento na vida, em que se torna necessário fugir. Ela me contava sobre essa coisa estranha dos estados de fuga. Tentava conjugar em inglês o que pensava em alemão. Eu constatava a dificuldade da conexão entre essas duas línguas filhas de mães tão diferentes. Éramos tantas quantas línguas nossas mães haviam ousado ser.
Havia noites em que ela devia voltar pra casa, mas não conseguia. Atravessando Kreuzberg, perdida na Orannienstraße, ousava sucumbir à pelúcia cor de rosa. No banheiro do Rose, pensando em vomitar tudo o que não suportava mais ser, lembrava da pessoa que um dia foi. Constatou o quanto os porres foram se tornando mais dor. "Era como se cada copo fosse um sorriso que eu deixasse para depois". Depois, ela me agradeceu por todas as vezes em que eu ousei discordar. "Só discorda quem está vivo para o outro. Há no discordar uma entrega amorosa". Perguntei se ela tinha uma data pré-programada para abandonar o vício. Ela riu, e a fumaça do cigarro machucou os meus olhos do outro lado da tela. Talvez tenha sido o vento. Em Berlim, todos choram contra o vento.
Era madrugada sempre que nos falávamos. Passávamos as noites no Skype, compartilhando uma vida que não existia. De longe, queria saber o que acontecia politicamente no Brasil. "Princípio do arenque vermelho", respondi. Ela não sabia do que eu estava falando. "Red herring", repeti, nessa língua que elegemos para conversar com todo o mundo. O inglês é o novo esperanto. Está ficando frio em Porto Alegre, até parece inverno. O pequeno verão talvez tenha servido apenas para que repensássemos a nossa estética do frio. Já nem no frio nos reconhecemos assim. "Eu gosto dos invernos quentes", respondo daqui. "Eu tenho medo", ela responde de lá. Berlim está em festa. "Estou tendo o melhor verão da minha vida".
O que ela quer mesmo saber, é sobre uma tal de literatura feminina. Me pergunta se eu acredito nisso e eu respondo que claro que sim desde que eu possa fazer parte dela. A resposta para o gênero é a mistura. "Sexualidade e gênero são coisas diferentes" - ela diz. Não sei se já leu Judith Butler, mas quer saber se pretendo assistir à fala dela em São Paulo. Não pretendo. Também não li. Em processos de criação é sempre perigoso teorizar demais. Usar a filosofia como resposta para as inquietações humanas é a prostituição do pensamento.
Skypes são estados de fuga. Fundam um novo território. Ela volta a querer saber sobre a teoria do arenque vermelho. Explico que esse espaço de pequenos assuntos, entre o começo da explicação e o retorno a ela, foi o nosso arenque vermelho. Esses assuntos aleatórios que levam ao sangue do arenque podre, são a matéria básica do amor. Amantes, se perdem nos labirintos sedutores com cheiro de peixe. Em estado de fuga, o bem comum que os amantes dividem é o querer estar junto. O corpo amante não equivale ao cão treinado. Na vida, não deveria haver um treinador, assim como não deveria haver um cão. Na festa dos amantes, somos todos raposas.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente no PrOA.