Cinco anos depois de assumir publicamente sua versão feminina, a cartunista transexual Laerte Coutinho, 64 anos, ainda se surpreende com o efeito que sua transformação provoca nas pessoas.
- Estou fazendo uma coisa que é absolutamente natural, é como se eu estivesse saindo para almoçar. Aí me surpreende a dimensão dessa coisa de transgeneridade, que me cai de forma tão natural - contou, por telefone, em entrevista ao caderno PrOA, na tarde de quinta-feira.
A seguir, a artista fala sobre a questão de gênero - tanto do ponto de vista pessoal quanto do país. E defende o direito de cada um viver sua própria liberdade.
Você ficou conhecido como figura masculina, depois se apresentava como Sônia, agora como "A" Laerte. No início se identificava como crossdresser, depois como travesti. Como se define hoje?
Eu sou Laerte. Sou uma pessoa transgênero, me identifico como mulher. Minha identidade é feminina. Agora, daí a dizer que sou mulher, eu não sei. Partilho da mesma confusão que existe (risos). Não é uma coisa tranquila para as pessoas ainda a questão de gênero, das definições de gênero. Gosto de me sentir livre e gosto de estar vivendo uma situação de gênero que é pessoal. E reivindico para mim o uso do feminino. Me incluo dentro de questões sociopolíticas que também dizem respeito à mulher, mas sei que não tenho útero e ovário, sei que tem uma série de questões... que eu não preciso ter resolvida, entendeu? Gênero para mim é uma vivência que deve ser livre. As pessoas devem poder viver a identidade que lhes parece mais cabível, mais adequada.
Na sociedade existe muito preconceito e receio de discutir o assunto. Por que você acha que a discussão de gênero assusta tanto a sociedade?
Porque é mais complexa e, de certa forma, transgride a própria homossexualidade, que já é uma coisa difícil para o imbecil do conservador, que acha que homem é homem, macho é macho, não compreende o desejo homossexual. Esse imbecil acredita que a transexualidade é uma espécie de homossexualidade exacerbada, que a travesti e a transexual são veados tão veados que precisam mudar de sexo. É uma forma completamente torta, e torpe, de entender. E você imagina os reflexos disso na educação, porque não há a menor dúvida de que essas coisas estão presentes nas escolas. Essa é que é a verdadeira ideologia de gênero, que existe, está implantada não só nas escolas, mas nos meios de comunicação, nas comunidades, nas igrejas. O que se reivindica é uma reflexão libertadora para que tenha fim um sofrimento enorme de crianças e adolescentes, que serão adultos sofridos também.
Assim como o seu caso se transformou em ícone do movimento trans no Brasil, nos EUA a transformação do ex-atleta Bruce Jenner em Caitlyn é emblemática. Por ser uma personalidade pública, você se sente imbuído de algum tipo de missão?
Não gosto dessa palavra missão. Estou fazendo o que acho que tenho que fazer. Sempre militei, sempre fui ativista de alguma forma na vida em relação às ideias que tive. O que se passa é que hoje, além das ideias, tenho uma vivência muito forte. E que me aproximou de um movimento que já existe, que é o movimento LGBT e o movimento trans. E estou nesse barco, junto com todo mundo. Assim como a Caitlyn.
Você se identifica com ela?
Sei pouco dela. Me identifico no sentido que é uma pessoa que fez um movimento relativamente tardio. Não sei como ela era na juventude e na infância, mas talvez ela tenha tido uma vida masculina satisfatória, como foi a minha. Eu não tenho bode da minha experiência masculina, nem renego nada. Não reneguei nem meu nome, que é supostamente masculino. Mas... dane-se! (risos). Na verdade, eu até conheço uma mulher chamada Laerte. Mulher genética mesmo. Mas as coisas estão mudando. Existem várias pessoas trans, ou não binárias, ou assumidamente femininas, que mantêm seus nomes masculinos. Existe uma visão que é mais livre, um entendimento de gênero um pouco mais amplo até. E eu acho que é um movimento meio irresistível.
Você lembra qual sua primeira tirinha com a temática trans?
Não. Provavelmente, como toda autora de quadrinhos, de roteiro, já usei essa coisa de travesti como recurso de roteiro, numa situação farsesca. Os primeiros usos mais frequentes eram com travestimento, questão cômica. E aos poucos eu comecei a usar de forma menos cômica, menos caricata. Até que teve a primeira tira do Hugo (ilustração nesta página) em que ele se travestia sem nenhuma desculpa, sem nenhum pretexto. Só fala aquilo: às vezes o cara tem que se montar, que é uma gíria de cross.
E isso casava com o teu processo?
É, nem era uma coisa para mim, era inconsciente. Foi esta tira que foi vista e uma amiga minha mandou um email, dizendo: "olha, será que você não quer também fazer como o seu personagem? Se você quiser nós temos aqui um grupo, e nos reunimos, tal." Foi em 2004. Antes o meu personagem Hugo já tinha se travestido com várias finalidades, como fugir da máfia, do mesmo modo que o teatro e o cinema sempre usou a pessoa travesti, com uma queda para o burlesco, para o humorístico. Ou no caso de mulheres, que se travestiam de forma mais dramática, como mulheres que estavam fugindo. Veja Grande Sertão: Veredas, Joana d'Arc, Maria Quitéria, em que mulheres se apresentavam como homens. Ali o contexto é de dramaticidade, não tem nada a ver com comédia.
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Você já disse que não cogitava a mudança de gênero definitiva. Isso se mantém ou pensa em fazer a cirurgia?
Cirurgia genital não. Considero fazer um implante de seios e considero uma mudança de registro oficial, para o feminino. Mas não sei. Essas coisas também têm uma dimensão de estratégia política, dependem de avaliações. Por exemplo, a luta do movimento LGBT pelo casamento homoafetivo não é pelo valor do casamento em si, é pela questão da igualdade de direitos. Tem muita gente analisando e fazendo apreciações meio sumárias, dizendo que o movimento LGBT é conservador, no sentido de estar querendo valorizar uma instituição que tá decadente. Isso é de uma imbecilidade, porque o que a gente quer é direitos iguais.