É uma discussão em que quase todos discordam em gênero, número e grau.
O grau da exaltação é superlativo. O número de envolvidos, exponencial. E o gênero... bem, o gênero virou um palavrão.
Alavancada pela guinada conservadora e religiosa nos parlamentos, a polêmica chegou aos planos escolares, que previam discussão sobre "identidade de gênero" nas salas de aula. Horror! Destruição da família brasileira!, bradavam deputados opositores e religiosos. "Desastroso para as crianças", classificou nota divulgada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A pressão foi tanta que, no Rio Grande do Sul e em pelo menos outros sete Estados e no Distrito Federal, referências a identidade de gênero foram suprimidas pelas Assembleias Legislativas durante a votação dos planos educacionais, os documentos que traçam metas educacionais para a próxima década.
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Nos debates acalorados, "ideologia de gênero" passou a ser o nome de uma ameaça latente, como se a simples menção ao assunto em sala de aula pudesse ter um efeito contagioso, capaz de provocar uma epidemia. Se nunca antes na história deste país tanta gente falou sobre gênero, nunca antes a discussão foi tão surda. Pesquisadores do assunto se espantam pelo grau de desconhecimento que sombreia um diálogo verdadeiro sobre um conceito ainda tão pouco compreendido.
- Há uma profunda ignorância por parte desses grupos conservadores, um completo despreparo do parlamento, não sabem nem diferenciar identidade de gênero, identidade sexual, orientação sexual. E é um retrocesso, porque as questões de gênero e sexualidade já estavam colocadas como temas transversais nos próprios parâmetros curriculares - critica a professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS Jane Felipe, integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero e responsável pela pesquisa internacional Violências de Gênero, Amor Romântico e Famílias.
Ela lembra que o conceito de gênero foi incorporado às teorias sociais para discutir expectativas em torno da masculinidade e da feminilidade. Discordando da ideia de que havia uma essência que definiria os papéis de homens e mulheres, teóricas feministas começaram a questioná-la. Segundo Carla Rodrigues, professora de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, essa elaboração teórica ganhou força a partir da década de 1970, vindo a se tornar um dos passos decisivos para o avanço nas lutas pelos direitos das mulheres: com a distinção entre sexo e gênero, chamavam atenção para questões culturais que subordinavam o feminino a uma condição inferior. Ou seja: mulher ter ovário e homem, testículos, seria uma diferença natural. Já ela ser proibida de trabalhar ou ganhar salário inferior ao dele seria cultural - e, portanto, passível de modificação.
Direitos homossexuais ganham o mundo
Na esteira das conquistas feministas, surgiram novas configurações. Na medida em que as mulheres assumiam novos papéis, homens também se viram sacudidos, questionados (Homem pode chorar? O pai pode assumir a guarda do filho depois da separação?). Enquanto homens e mulheres reviam seus próprios espaços, o crescimento do movimento transexual passou a reivindicar outras categorias. Qual é o gênero de quem nasce com testículos mas se reconhece como alguém pertencente ao universo feminino, por exemplo? De lá para cá, a lista de nomenclaturas só cresce, tentando dar conta da diversidade. O Facebook, por exemplo, oferece 17 opções de gênero e de orientação sexual para seus usuários se identificarem de forma personalizada - passando por "trans homem", "trans mulher", "pessoa transexual" e "Mulher (trans), "Neutro" e "Cross Gender".
- Com o movimento trans, essa ideia de vinculação da identidade de gênero a um corpo específico é quebrada, o que traz uma complexificação, o caráter de fluidez de gênero - diz a socióloga Berenice Bento, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autora de livros como O que é Transexualidade (Coleção Primeiros Passos/Brasiliense, 2008).
Mas, afinal, por que a discussão sobre gênero assusta tanto? Para Berenice, é preciso lembrar que o conceito sempre esteve carregado de uma disputa política. Antes eram as mulheres reivindicando espaço no mercado de trabalho, hoje são gays e transexuais lutando por reconhecimento identitário. Em jogo, disputa de significados e direitos.
- Esse movimento não tem freio. Independentemente da vontade de quem seja, vão continuar a existir alunos travestis perguntando: qual banheiro eu uso? A discussão está posta na sociedade, não tem como voltar atrás - avalia Berenice, lamentando a tentativa de colocar a discussão para debaixo do tapete e impedir que as escolas cumpram seu papel educativo e acolhedor de diferenças.
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Para o psiquiatra e psicoterapeuta Pedro Curvello, de Brasília, estaríamos apenas no meio da mudança de gênero, mas sem saber ainda para onde vamos. O desafio seria reencontrar ligações de igualdade e amorosidade.
- As coisas que existem não servem mais como parâmetro. Temos marcados na nossa alma papéis arcaicos, não se rompe com isso impunemente - avalia.
A pluralidade de movimentos é tanta que há teóricos questionando se não estaria na hora de superar o termo "identidade de gênero" para dar conta de tantas vertentes que extrapolam o binômio masculino e feminino. Já teríamos chegado à era do pós-gênero.
- A questão da identidade de gênero é importante para pensar a desigualdade entre homens e mulheres, mas é insuficiente para dar conta da multiplicidade de identidades de gênero que existem além disso - reflete a professora de filosofia da UFRJ Carla Rodrigues.
A complexidade que perpassa o universo trans é contemplada no documentário De Gravata e Unha Vermelha, produzido pela psicanalista e documentarista Miriam
Chnaiderman. Na avaliação da autora, que entrevistou personalidades como Ney Matogrosso, Rogéria e Laerte (leia a entrevista com Laerte, autora dos quadrinhos que ilustram esta reportagem, na página 8), os gritos conservadores seriam uma reação às conquistas dos movimentos libertários. Ainda assim, ela acredita que o questionamento dos papéis de gênero pode ser pensado sob um outro prisma: o de uma libertação coletiva.
- Quando se pensa em questionamento de gênero se pensa no trans, mas isso diz respeito à sexualidade de maneira geral. É preciso bagunçar esses papéis tão estereotipados da cultura, porque o desejo é disruptor e libertário, mesmo para quem é hetero. Isso pode libertar a todos nós desses papéis - propõe.
"Ninguém opta por ser homo, hetero ou trans"
Coordenadora do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a psiquiatra Maria Inês Lobato acompanha no dia a dia grupos de pessoas que apresentam convicção de pertencer ao sexo oposto ao determinado pelo sexo biológico. O serviço, criado em 1998, é referência nacional em cirurgias de redesignação de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para os casos em que o procedimento é recomendado, após dois anos de acompanhamento por uma equipe multidisciplinar. Mais de 160 pacientes diagnosticados com a chamada disforia de gênero já passaram pela operação na instituição.
No início do trabalho, Maria Inês sofreu preconceito até entre colegas, que achavam que não era uma população que merecia a atenção médica. E acredita que muito dessa discriminação vem da falta de informação.
- Ninguém opta por ser hetero, homo ou trans. Nosso referencial é biológico. Acreditamos que o gênero e a orientação sexual são determinados precocemente na vida do indivíduo. Se todo mundo entendesse que a gente nasce assim como nasce com cabelo de um jeito, ou com determinada cor de olhos, seria mais fácil - acredita.
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De acordo com o viés biológico, o reconhecimento de gênero ocorreria na primeira infância, e a orientação sexual seria revelada na adolescência, quando começa o desenvolvimento hormonal, com as respostas sexuais. Nenhuma pesquisa confirmou possibilidade de reversão de identidade de gênero e orientação sexual.
- Nosso comportamento é mais biológico do que a gente imagina. Não é algo contagioso, cada um simplesmente é como é.