*Ruben George Oliven é Professor Titular de Antropologia da UFRGS e membro da Academia Brasileira de Ciências. Escreve mensalmente.
Desde seu descobrimento até meados do século 20, o Brasil foi um país rural. Somente no censo de 1970 a população urbana ultrapassou a que morava no campo. Esse processo foi se acelerando e atualmente 85% de nossa população vive em situação urbana.
O fato de o Brasil ter sido durante a maior parte de sua história um país com população rural foi responsável pela ideia de que tínhamos uma vocação agrária e que nosso temperamento fora moldado no campo. Mas, a partir dos anos 1950, quando a grande meta nacional era superar o subdesenvolvimento, o campo passou a ser visto como símbolo de atraso. Não só era um lugar de pouco progresso tecnológico, mas o modo de dominação era patriarcal e baseado em grandes latifúndios, muitas vezes pouco produtivos.
Nesse contexto, a cidade e a indústria a ela associada eram vistas como símbolos de progresso. Cidades, principalmente com grandes avenidas e prédios altos, representavam a modernidade. A construção de Brasília e o slogan de avançar 50 anos em 5 ilustram bem como o urbano era encarado de forma positiva.
Quando o país estava em processo de crescimento urbano, tudo o que lembrasse o campo era visto negativamente. Jeca Tatu, retratado por Monteiro Lobato, em 1918, como um caipira de aparência doentia, era um exemplo de atraso que desagradava políticos e intelectuais. Reação semelhante ocorreu em relação ao 35 CTG, o primeiro centro de tradições gaúchas, criado em 1948 em Porto Alegre. Segundo seus fundadores, a agremiação era encarada com certa distância pelas elites da capital, que pretendiam ver a cidade transformada em metrópole e não queriam ser lembradas pela figura campeira do gaúcho.
Na década de 1970, manifestações culturais como as canções de Teixeirinha e a música sertaneja de São Paulo, embora extremamente populares entre as camadas mais simples da população, eram vistas como regressões musicais apreciadas por pessoas recém-vindas do interior e sem o capital cultural necessário para usufruir formas mais elevadas de arte.
Hoje, o panorama se inverteu. O gauchismo passou a ser valorizado e muitos de seus adeptos são jovens universitários de classe média que moram em cidades. Vários deles cairiam de um cavalo se tentassem montá-lo. O Acampamento Farroupilha, que se realiza em setembro em Porto Alegre, reúne milhares de pessoas que se pilcham e saem de seus apartamentos para vivenciar a experiência campeira na cidade.
Da mesma forma, a Festa do Peão Boiadeiro, o maior rodeio brasileiro, ocorre em Barretos, em São Paulo, o estado mais rico e industrializado do país. O estádio dos rodeios foi projetado por Oscar Niemeyer, o arquiteto que desenhou os mais importantes prédios de Brasília. O estilo que prevalece lá é o country, que faz a apologia do estilo de vida rural. O campo exaltado é de gente rica que deu certo e que se orgulha de seu estilo pouco sofisticado.
Em 2014, as canções mais tocadas em rádios foram as do gênero sertanejo universitário, apreciado por jovens de classe média e de formação superior. O fenômeno provoca calafrios em críticos musicais para os quais esse gênero constitui um retrocesso, mas ele indica uma tendência que se verifica em outros países nos quais o processo de urbanização alcançou sua plenitude.
Quando a maioria da população vive em cidades, é natural que haja uma recriação de um campo idílico e sem conflitos. Uma pesquisa sobre os leitores de Globo Rural mostra que eles sonhavam possuir uma casa no campo sem jamais terem tido qualquer experiência no meio rural, liam a revista sem sequer ter um jardim, uma jardineira, uma horta ou mesmo um vaso de planta. Queriam voltar para um lugar que nem ao menos chegaram a conhecer. Nesse lugar imaginado sempre havia um fogão a lenha, símbolo de um aconchego inexistente na cidade.
Os versos que dão título a esta crônica - extraídos da canção de Zé Rodrix e Tavito, imortalizada por Elis Regina -, definem com precisão este sentimento: "Eu quero uma casa no campo / Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé / Onde eu possa plantar meus amigos / Meus discos e livros e nada mais". Detalhe: embora seja considerado um dos pais do "rock rural", gênero que floresceu nos anos 70, Zé Rodrix não era nem um pouco afeito ao estilo de vida no campo.
Desde que Adão e Eva foram expulsos do paraíso, a humanidade sente saudades de um passado em que os seres humanos teriam vivido em harmonia com a natureza e sem noção do pecado.
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