*Historiador. Colunista interino.
"Um par de pernas está truncado /
no deserto... a areia enterra/
os restos de um semblante estilhaçado...
com lábio e o cenho frio de guerra."
(Percy Shelley - Prometeu Desacorrentado)
As trovoadas que anunciavam o começo da guerra na Europa em agosto de 1914 logo foram ouvidas pelo meu bisavô, o Vecchio Londero.
De imediato, por meio de um telegrama, ordenou a seus dois filhos, Alfredo e Frederico, estudantes de uma excelente escola no norte da Itália, que voltassem para casa. Deviam comprar logo as passagens - ainda que a Itália se manifestasse neutra, longe dele arriscar a vida dos seus rapazes naquele incêndio pavoroso que terminaria por envolver a maior parte do mundo. A viagem foi uma desgraça para a dupla. O único navio, partindo de Gênova ou Livorno, que ainda tinha uns beliches a oferecer era um carcomido cargueiro francês. Acostumados às refeições sadias do internato, tiveram que enfrentar a comida faisandé (alimentos deixados a se decompor), tão ao gosto da tripulação e que quase os matou. Minha tia-avó Alda, que fora encarregada de recebê-los no porto de Montevidéu, ficou chocada quando viu os irmãos descerem em maca da embarcação. Ficaram um par de meses na capital uruguaia em busca de recuperação até se sentirem aptos a voltar para o Rio Grande.
A tranquilidade do patriarca não durou muito. Mal a Itália se decidira, em 23 de maio de 1915, a declarar guerra às potências centrais, os colegas italianos de Alfredo e Frederico enviaram-lhes uma carta. Alegaram que, como eles passaram a maior parte dos anos na Itália, era dever deles apresentar-se para lutar por ela.
A mudança repentina do governo romano de Gioliti e Salandra deveu-se a um tratado secreto firmado em Londres, em abril de 1915, com os membros da Entente (Grã-Bretanha e França), que seduziram o velho ministro com a promessa de que o reino dos Saboia receberia compensações pela adesão aos aliados ocidentais. E, se assim não o fizesse, o império colonial italiano (Líbia, Abissínia, Somália, Eritreia) seria facilmente ocupado por tropas anglo-francesas.
Mas o que realmente fez disparar o coração dos peninsulares foram os comícios poético-patrióticos do bardo da época: Gabriele D'Annunzio. Até então frequentando altas rodas em Paris ou Nice, clamou a favor da guerra em quase todas as grandes cidades italianas. Os descendentes dos romanos deviam deixar um poderoso selo moldado em metal, uma marca impagável na guerra que se desenrolava e cujo desenlace faria brotar um novo mundo.
Mesmo que D'Annunzio provocasse histeria por onde arengava, a maioria do povo italiano não tinha entusiasmo em pegar em armas (e com razão, de 1915 a 1918, 650 mil morreram ou foram feridos). Mussolini, ainda militando no Partido Socialista, do qual não demorou a ser expulso, observou então que quem empurrou a massa para o incêndio foi uma minoria de líderes como o poeta-soldado (seu inspirador). Constatou que quem de fato dirigia a história era um reduzido grupo de homens decididos e determinados a tudo com o dom para conduzir as massas para onde eles as atiçassem. Assim nasceu o fascismo.
No Brasil, o Vecchio Londero impôs uma condição. Somente um de seus filhos embarcaria. Até hoje ninguém sabe como os irmãos resolveram a pendenga. Alfredo "venceu" Frederico, fez as malas e se foi para o inferno.
Durante quatro anos, nada souberam dele, até que uma missiva do capelão do regimento dos rapazes alcançou a família. Infelizmente, Alfredo morrera no primeiro embate. Ele e mais 120 colegas foram enterrados vivos por não saberem estaquear devidamente as trincheiras durante a batalha do rio Isonzo. Bastou a primeira barragem de fogo dos austríacos para que, desesperados, tentassem inutilmente escapar do mortífero aluvião. O que era para protegê-los os matou.
Passados 40 anos deste episódio infeliz, tia Alda me mostrou a "santinha" que Alfredo carregava no bolso da túnica. O sangue se transformara numa mancha roxa. Nada mais restara. Anos depois, conheci Frederico, casado e com família. Notei que seus olhos claros eram acinzentados e não escondiam sua tristeza. Que carga de culpa ele deve ter carregado até a sua morte...