Jornalista e historiador, autor do documentário Memórias do Chumbo - O Futebol nos Tempos do Condor
Foram necessários 83 anos de vida para finalmente conhecer a lei. Em um país estranho, quando mais do que nunca se achava acima do bem e do mal, acima dos homens, acima da justiça. Inimputável. Por trás, milhões de dólares ganhos por caminhos tortos. E um rastro de dor, sombra e morte.
Parece atual? Parece óbvio? De quem estamos falando? Estamos falando de José Maria Marin, é claro. Mas poderia ser perfeitamente Augusto Pinochet. Os mesmos 83 anos ao ser preso. Também em terra estrangeira. A mesma certeza da impunidade, a mesma certeza de estar acima de qualquer coisa. Os mesmos milhões de dólares subtraídos na calada da noite. Certamente não é o mesmo rastro de dor, sombra e morte. Mas deixo para outro a tarefa de quantificar a canalhice e a vilania. Tortura é tortura, barbaridade é barbaridade, seja com um ou um milhão. Seja mandando alguém para a morte no Estádio Nacional do Chile ou nas masmorras da Rua Tutoia.
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Viverei cem anos e não vou esquecer daquele canto do estádio no pé dos Alpes. Os gritos lancinantes de dor ainda parecem ecoar. A escuridão permanece ali como marca indelével daqueles anos de chumbo. Não é diferente quando se anda pela ESMA argentina, ali, a 700 metros de onde se jogava uma final de Copa do Mundo em 1978 e gente morria. Os lugares de memória são assim. Fundamentais, pedras da democracia, mas com vozes perturbadoras que o tempo não leva. Se mais cem tiver, também não terei como esquecer da visita no DOI-Codi da Tutoia. Herzog estava ali, tantos anos depois. Foi Marin que o mandou para lá. Sabia o que estava fazendo naquele 9 de outubro de 1975 quando subiu na tribuna e apontou o dedo para os "comunistas da TV Cultura". Naqueles dias era como decretar a morte de alguém. O deputado da Arena, ex-membro do PRP de Plínio Salgado, como lembra mestre Luis Claudio Cunha, deve ter vibrado com o resultado de sua alcaguetagem. Dedo-duro, uma das mais abomináveis faces de um homem. Nenhum pai cria um filho para ele ser um delator. Duas semanas depois, Herzog estava morto numa cela. Marin nunca demonstrou qualquer traço de arrependimento. Não devia mesmo. Tinha convicção no que estava fazendo. E ainda tem.
A mesma convicção que tem quando pensa futebol. Porque ninguém tenha dúvida. A aberração e o caos que vivemos, sintetizados num 7x1 que será eterna ferida em nossa alma, esse desgoverno que vai tornando o futebol nossa paixão de toda vida em espaço onde somos incapazes, tudo isso é para ser assim mesmo na cabeça de Marin, Del Nero, Teixeira. Ou alguém imagina que estão muito aborrecidos com a tragédia que viraram nossos jogos, nossas competições? Ou alguém acha que se incomodam com tanto passe errado, com tanta bola parada, com tanta falta? Não têm tempo para isso. Estão contando dinheiro. Querem que se dane o futebol.
E vocês vão pagar e é dobrado mesmo. Marin, Teixeira, Del Nero. Um preso aos 83 anos. Como se explica a um neto que "vovô foi preso"? O outro vivendo nas sombras. Foi tanto dinheiro, e eis que já não serve para nada. Vale a pena se não pode dar um passo na rua? Nem mesmo em Boca Raton. E o terceiro saindo corrido da Suíça, tal qual um trânsfuga. Vivendo de sobressalto. Na idade em que se vive de leveza.
Mas, como disse o poeta, "apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia"... A história não tem pressa... Nesta Porto Alegre que me acolhe neste domingo, tenho certeza de que esta mesma história reserva o lixo para Pedro Seelig. E que um dia Jair Krischke, brasileiro maior, homem de ação que salvou tantos em silêncio, ainda estará nos compêndios escolares.
Hora de começar tudo de novo por aqui. Sem essa turma. Botar a bola no chão novamente, povo na arquibancada e não nos camarotes que esses nos empurraram goela abaixo e que agora vamos entendendo onde foi parar essa montanha toda de dinheiro.
Se até aqui só teve agenda para contar dinheiro, agora Marin vai ter muito tempo para refletir enquanto olha pro teto da cela. Sobre essa existência medíocre de alcagueta, sobre a estupidez que é alguém de 83 anos querendo amealhar milhões. Sobre o que fizeram com nosso jogo. Que seja o primeiro de muitos. E que, como castigo, tenham que assistir a um jogo do atual Campeonato Brasileiro no domingo.