*Paulo Gleich é jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente.
No coração de Berlim, perto da sede do parlamento alemão e ao lado do, em maio, verdejante parque Tiergarten, há uma curiosa praça que ocupa uma quadra inteira. O espaço, todo pavimentado, é preenchido por monolitos retangulares de concreto que, vistos de longe, parecem ter mais ou menos a mesma altura, com apenas alguns centímetros de diferença. Os blocos estão ordenados em impecáveis filas e colunas, com superfícies e espaçamentos idênticos. Ao avistar a praça, a primeira imagem que me veio à mente foi a de um grande cemitério de guerra, aqueles que dizem mais do número de mortos que de suas singularidades.
Caminhando por entre aqueles blocos cinzas, à medida que andava rumo ao centro da praça, percebi que o chão ia afundando - e os blocos, aumentando de altura. Subitamente, ao olhar em volta, percebi que a cidade, assim como as pessoas que sabia estarem perto, haviam desaparecido. Ao meu redor, apenas a floresta de concreto: os blocos, que de um metro de altura haviam passado a três, e o chão ondulado, que lembrava o traiçoeiro fundo de algumas praias nas quais com um passo a água passa da cintura a não dar mais pé. Quanto mais avançava, mais crescia um sentimento de angústia, solidão, desamparo. Não suportei ficar ali no meio por muito tempo e resolvi voltar, sem sequer ter alcançado o centro da praça.
No caminho que tomei para retornar às bordas da praça, me deparei com uma cerejeira em flor, que ocupava o que seria o lugar de um bloco. Ver aquela árvore tão viva e cheia de galhos tortos e imperfeitos, quebrando a ordem morta e mortífera dos blocos de cimento cinza, trouxe verdadeiro alívio. Emocionado, lembrei de uma querida amiga que tem um especial apreço por essa flor, símbolo da efemeridade da vida, a ponto de tê-la tatuado em sua pele. Olhando em volta, percebi que havia outras árvores entre os blocos de concreto. A perfeição quadriculada não era tanta como parecera, era um alento encontrar aquelas falhas cheias de vida entre tanta ordem gris e morta.
Não havia visto nenhuma placa, nenhum cartaz explicando de que se tratava aquela peculiar praça, mas o que vi e senti na caminhada me fez intuir que se tratava de uma homenagem às vítimas do nazismo. De fato, é o Memorial aos Judeus Mortos da Europa, que foi inaugurado em 2005, 60 anos após o final da II Guerra. É um dos muitos memoriais dedicados à lembrança das vítimas do Terceiro Reich que há em Berlim e na Alemanha inteira. A experiência que tive ao caminhar por aqueles fúnebres corredores fez pensar nos milhões de mortos do nazismo, assim como na perversa perfeição das máquinas de matar que foram campos de concentração. Mas também evocou outras memórias, imagens, pensamentos sobre a condição humana.
No idioma alemão há duas palavras similares para "memorial": Denkmal e Mahnmal. O Mal, que ambas têm em comum, significa "sinal", "marco". A sutil diferença está nos prefixos: Denk vem de "pensamento", ou seja, um memorial é um sinal para pensar, refletir. Já Mahn tem o sentido de "alerta": um Mahnmal existe não apenas para preservar a memória, mas para alertar as gerações futuras em relação ao acontecido. Preservar a memória de um passado funesto é não apenas um ato público de contrição, mas também uma forma de tentar evitar que se repita; para isso servem os museus e memoriais que documentam e lembram crimes cometidos por Estados ou nações.
Caminhando por Berlim, a cada tanto encontra-se um pedaço material dessa história e sente-se um pouco de seu peso. Mas a cada outro tanto há um encontro com um gesto gentil, uma obra de arte, um espaço público ou outra manifestação de uma forma de convívio que parece existir só por lá. Apesar do passado cinza-chumbo, marcado não só pelos horrores do nazismo, mas também pelo famigerado muro que dividiu a cidade até a década de 90, Berlim é uma cidade cheia de vida. Talvez ela seja assim justamente por isso: viveu de perto as consequências da segregação e do ódio, e seus habitantes não querem voltar a viver aquilo. E por isso, fazem questão de lembrar suas feridas, para sempre abertas, mas que o esquecimento ou a ignorância poderiam perigosamente fazer aumentar.