Princesa Isabel: foto foi feita para o acervo pessoal da família imperial Orleans e Bragança Identidade: no lado oposto da fileira, supostamente estaria Joaquim Nabuco.
À esquerda da princesa, vários integrantes do clero, inclusive um paramentado, são negros
Espichando o pescoço para aparecer - ou recuando para não se mostrar - o senhor de barba grisalha misturado à comitiva de imprensa próxima à Princesa Isabel na imagem acima foi identificado como Machado de Assis (1839 - 1908). O reconhecimento foi feito por Eduardo Assis Duarte, doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (USP) e professor da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisador da obra do maior escritor brasileiro. A cena foi tomada no campo de São Cristóvão, em 17 de maio de 1888, quando da missa campal em celebração à assinatura, pela princesa, da lei que abolia a escravidão.
Descoberta: especialista identificou Machado na foto, junto a homens de imprensa.
A presença na foto do autor de obras-primas como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas foi um dos grandes temas de discussão desta semana. O escritor, mulato, nunca fez manifestações públicas a respeito da escravidão, e mesmo em sua literatura a abordou muito de viés. Agora, pesquisadores vêm percorrendo a imagem para tentar identificar outros personagens: aquele com a faixa "imprensa" transpassada seria Joaquim Nabuco? Esse encoberto pelo poste é José do Patrocínio? Quem são os clérigos negros à esquerda da regente? A foto está no Portal Brasiliana Fotográfica, mantido pela Fundação Biblioteca Nacional e pelo Instituto Moreira Salles - entrou no ar em abril, com acervo inicial de duas mil imagens raras.
- Em fotografia, você tem um dado sucinto de autor, data, contexto, mas no exame da imagem você encontra coisas que ajudam a avançar - diz Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS.
MACHADO E A ABOLIÇÃO
Apesar da produção jornalística intensa, Machado escreveu pouco sobre a Abolição - sua presença na Missa Campal do dia 17 pode ser considerada uma surpresa. No pouco que deixou sobre o assunto, contudo, ele confirmou ter participado dos festejos que se seguiram à assinatura da lei de 13 de maio de 1888:
Em uma série de notas publicadas na edição de 21 e 22 de maio de 1888, o jornal Gazeta de Notícias resumia a parada realizada no dia 20 por uma comissão de imprensa. Machado é citado: "Carro com os Srs. Dr. Ferreira de Araújo e Machado de Assis, da Gazeta de Notícias". Ferreira de Araújo foi o fundador da Gazeta, na qual Machado escrevia a coluna A Semana.
Em 19 de maio de 1888, Machado não falou pessoalmente da lei, mas criou uma cena irônica protagonizada por um senhor:
"Eu pertenço a uma família de profetas aprés coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar."
Só em 14 de maio de 1893, cinco anos depois, Machado relembraria sua presença nas festividades:
"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto."
Anos depois, em seu romance Memorial de Aires, publicado em 1908, Machado escreveu:
"Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na Rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da Rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros."
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