* Escritor e dramaturgo, autor de Só a Exaustão Traz a Verdade (2014). Escreve mensalmente no PrOA
"Estar em casa se tornou uma situação incômoda", ela me disse dentro do ônibus. Voltava à terra natal sem saber o que a esperava depois da ponte. Poderia até ser um dia das mães, não fosse ela uma vítima de porn revenge. Ainda menor de idade, conheceu um cara que lhe apresentou a primeira bebida, o primeiro cigarro e a primeira foda. Foi ele quem a fez acreditar, aos 16, que ficar nua diante de uma câmera é bonito quando existe amor. Ficar nua foi também uma prova de amor. Ela, em processo de descoberta, embarcou. Ele prometia casamento. Ela preferia ficar nua. Observar a própria construção da sexualidade, através do olhar do outro, era isso o que a interessava. Por acreditar na maturidade do amor, entrou na brincadeira das fotos.
Quando fez 18, passou na federal. Ele seguiu no Vale. Ela se mudou para a Capital. Ele nunca engoliu o que ela fez. Ela partiu deixando em casa uma mãe e um pai contentes, e um monte de fotos sensuais no HD do ex. Hoje seria um Dia das Mães normal não fossem as fotos deixadas para trás. Hoje, suas fotos circulam pelas telas mais nojentas da pequena Encantado. Divulgadas na internet e compartilhadas ad nauseam pelos guris do "Ousadia & Putaria". Esse seria um porn revenge normal, como tantos são, provocando incontáveis suicídios por parte das vítimas que, culpadas, literalmente enlouquecem a ponto de se matar, não fosse um dos sócios do jornal local, Juremir Versetti, após permitir que fotos íntimas das vítimas fossem publicadas, ter ainda postado em sua página no Facebook a seguinte mensagem:
"Estão aparecendo quase que diariamente fotos e vídeos de jovens nuas de nossa região na internet. Se essas moças não se valorizam, então elas que tenham dó dos seus familiares. Alguém me disse que elas precisariam de um acompanhamento psicológico. Tem remédio sim, uma boa cinta de couro de búfalo com uma fivela de metal fundido, isso sim ajudaria e muito no psicológico delas. Vamos crescer e amadurecer aí moçada. Ou vocês acreditam que o namorado de hoje será o esposo de amanhã?????"
A postagem foi amplamente curtida e apoiada por homens e mulheres da região dos Vales.
Se a Grace de Nicole Kidman suporta calada toda sorte de punições da pequena Dogville, basicamente por haver se recusado a transar com um dos "comeninguém" da cidade, as gurias de Encantado não estão dispostas à mesma subordinação. Agora que os protestos se popularizaram, nada mais certo do que botar a cara na rua para impor respeito e cobrar do Ministério Público que, caso não haja punição prevista na Constituição, uma nova lei, assim como a Lei Carolina Dieckmann, seja criada. Em Encantado, advogados estão sendo contratados, afinal de contas, dano moral custa caro, e todos, direta ou indiretamente, estão meio que respingados por essa sujeira.
O caso das jovens de Encantado comoveu a deputada estadual Manuela DÁvila, que levou a pauta à reunião da Comissão de Direitos Humanos, na Assembleia Legislativa. Ela pretende conversar com as autoridades policiais e judiciais sobre a investigação do caso e acionar o Ministério Público, o que também já vem sendo feito por inúmeras vítimas da perseguição coletiva. Em seu discurso na terça-feira, dia 5 de maio, Manuela declarou na tribuna: "As pessoas precisam saber do perigo deste hábito cruel de responsabilização das vítimas. Meninas já se mataram em função destas questões. Ter sexualidade não é crime. Crime é expor a privacidade de alguém".
Os pais das gurias começam a entrar na Justiça. Querem fazer valer alguma lei que proteja as gerações futuras de constrangimentos públicos semelhantes. Há uma onda de suicídios motivados por uma vingança machista que culpa a vítima. Esses pais querem que o assédio moral seja devidamente reparado, o que é justíssimo. Encantado prepara a pipoca para assistir de camarote ao desenrolar da trama. Se a internet trouxe consigo novos comportamentos e, com eles, uma nova ideia de crime, a vitória na Justiça das gurias de Encantado pode ser não uma guerra dos sexos, mas um importante passo em direção a uma utópica, e não necessariamente aspirada, igualdade de gêneros no comportamento online.
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