* Eduardo Wolf é professor e tradutor. Escreve mensalmente.
1. No Reino Unido, a direita política está organizada em um partido que não deixa dúvidas quanto a sua posição ideológica - o Partido Conservador (ou Tory) traz no nome uma história e um programa. Enquanto em tantas outras partes do mundo o termo funciona como uma condenação, no Reino Unido os tories assumem sua posição no espectro político e obtêm boas vitórias eleitorais por isso mesmo. Foi assim com Tatcher desde 1979, e se não foi assim com a primeira vitória de David Cameron, em 2010, é possível dizer que foi, sim, com a vitória do último dia 7 de maio. Calhou de minha temporada veneziana levar-me novamente à Inglaterra precisamente no período eleitoral, de onde acompanhei a vitória de David Cameron.
Cameron criou, em seu primeiro mandato, algo como 2 milhões de novos empregos, manteve a inflação perto de zero, bateu-se pelo ajuste fiscal (que ficou pela metade, registre-se) e aprovou uma legislação extremamente avançada, legalizando o casamento gay (contrariando setores retrógrados de seu partido); mesmo tendo cortado centenas de milhares de cargos públicos, pesquisas de avaliação indicaram mais, e não menos satisfação da população com os serviços prestados, assim como foi positiva a avaliação das novas escolas criadas por Michael Gove, livres da burocracia doutrinária e estúpida dos sindicatos. Por que, então, a vitória de Cameron foi vista com alguma surpresa?
Uma hipótese mais cultural que política: a extraordinária capacidade de embuste típica de intelectuais, acadêmicos e jornalistas progressistas. Lendo o que vinha sendo publicado na dita imprensa da esquerda britânica, ficamos com a impressão de que a população queria ardentemente um programa econômico comandado por Guido Mantega e uma vida sociocultural dirigida por Marilena Chauí. Não queriam: queriam exatamente o que o conservadorismo lhes oferecia - menos ideologia, menos Estado, mais trabalho e mais autonomia. O candidato trabalhista, Ed Miliband, ao dar uma guinada estatista e sindicalista na política do Partido Trabalhista, quis enterrar o legado de Tony Blair, que modernizara o partido nos anos 90. Talvez tenha enterrado o partido.
2. Já em Veneza tem sido possível não se interessar pela política governamental ou partidária, o que fica mais fácil quando a cidade inteira parece estar em uma dimensão em que o tempo e a realidade não mais a alcançam. Lamentavelmente, a "princesa do Adriático" precisou ceder alguns de seus melhores espaços para o proselitismo vulgar, desinformado e mal realizado dos artistas da 56ª Bienal de Veneza (há exceções, como de praxe), que escreve mais um triste capítulo da subordinação da arte e da vida aos interesses doutrinários de uma classe razoavelmente abastada e descolada da realidade e dos sentimentos humanos, a classe dos "artistas contemporâneos engajados". Além dos discursos infindáveis sobre a perversão da sociedade europeia, sobre a maldade intrínseca do capitalismo anglo-americano, e já global, sobre a crise apocalíptica que se avizinha e que nos aniquilará a todos - com citações de Walter Benjamin aqui, Slavoj Zizek ali -, o que mais a Bienale pode nos oferecer? A exibição do curador, Okwui Enwezor, diretor da Bienale, All the World's Future, resume bem o "estado da arte": uma leitura de O Capital, de Marx, é parte da "obra". Falta de imaginação, inabilidade criativa e muita, muita pretensão política para "falar pelos desfavorecidos e oprimidos". O resultado é o esperado: menos que nada.
3. O que a vulgaridade e o proselitismo da Bienale tiraram-me em matéria de paciência, Youth, novo filme de Paolo Sorrentino que acaba de estrear na Itália, devolveu-me em beleza, verdade e emoção. Depois do premiado A Grande Beleza, Sorrentino investiu em uma produção internacional, com Michael Caine no papel de Fred Barlinger, um compositor e maestro inglês aposentado em férias nos alpes suíços. Com trilha do compositor americano David Lang, Youth me dá a impressão de que Sorrentino busca cada vez mais uma arte total: a música, a literatura e a pintura são constitutivos de seu cinema. Os corpos, velhos e novos, nos são apresentados com a força de uma tela de Lucien Freud, e a música de Lang comanda, sem prejuízo para a autonomia da trama e da atuação, muito de nossas reações e emoções. E, como diz um personagem à certa altura, "as emoções são tudo o que temos".
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