* Em depoimento a Cristiano Bastos.
O PrOA antecipa trechos de livros no prelo ou às vésperas do lançamento. Leia a seguir um excerto de Julio Reny: Histórias de Amor e Morte, biografia do músico composta a partir de um ano e meio de entrevistas ao jornalista Cristiano Bastos - um dos autores de Gauleses Irredutíveis, já um clássico do jornalismo local. A biografia recupera a trajetória de um personagem mítico da música feita no RS. Porto-alegrense hoje com 56 anos, Reny atuou desde os anos 1970 tanto na música (compondo canções como Jovem Cow­boy, Não Chores Lola e Amor & Morte ou em bandas como Urubu Rei) quanto no cinema - ator em filmes como Verdes Anos ou Vicious - e no rádio - locutor na Ipanema FM. A biografia apresenta essa trajetória de modo experimental: foi escrita por Bastos como se fosse Reny na primeira pessoa (este trecho corresponde a uma etapa da juventude na qual Reny havia recém deixado as categorias de base do Internacional). O livro tem previsão de lançamento para julho.
Após a decepção no Internacional, abandonei a fantasia futebolística e, andando pelo lado negro da força, joguei-me de cabeça, punhos, chutes e pontapés no submundo das brigas de rua.
Eu me sentia perdido e sem o futebol fiquei totalmente sem rumo. Até pelo meu velho, com quem firmara fortes laços de amizade, me achava desamparado. Já não fazíamos mais as divertidas pescarias que tanto nos aproximaram em outros tempos. Fomos relegando uma a uma todas as pequenas e grandes coisas que pais e filhos fazem juntos. Lamentavelmente deixamos de ser próximos. Tínhamos perdido a camaradagem em algum canto obscuro de nossas vidas. Apesar da crescente distância, apanhei de meu pai uma única vez. Levei uma surra por causa de um treino de futebol. Me "sentou o laço". Ele não queria me deixar ir, mas, batendo pé, lhe enchi a paciência. Meu velho, na época, passava por uma pesada barra pessoal - e descarregou em mim. Nunca o culpei. Eu amava meu pai e, no fundo, mereci.
Apanhar nas ruas fora o que faltava pra liberar a rebeldia que há tempos eu represava. Eu estava a ponto de explodir. Precisava, o quanto antes, dar um basta na humilhante sina de ser o saco de pancadas dos metidos a valentões. Cansado daquilo, decidi que iria me impor a qualquer custo. Eu experimentava um desafio atrás do outro: no colégio, deixara de ser o cara que apanhava pra ser o que surrava; de brigadiano mirim, virei bem-sucedido ladrão de discos; e, após ter malogrado o sonho de ser goleiro profissional, amargava a derrocada romântica. Ou seja, a pior das derrotas pra um jovem recém ingressando na adolescência. Foram os discos de minha coleção que, de certa forma, me salvaram do total isolamento. Em outras palavras, música.
Por volta dos dezesseis anos, fiz uma grande amizade na rua onde, na época, meu pai tinha sua barbearia, próxima à Venâncio Aires. Esse meu novo amigo chamava-se Vinícius. No dia em que meu pai trocou sua barbearia de ponto, a família do Vinícius, coincidentemente, se mudou pra perto de onde morávamos. Viramos vizinhos e passamos a andar juntos. Pras garotas, Vinícius era o arquétipo de homem bonitão, do tipo que elas adoravam. O galã do pedaço. Tímido e sem desenvoltura, ter sua amizade era um bom negócio, já que ele me levava a todas as festinhas. Eu andava mais calmo, por esses dias, e poucas eram as brigas de rua em que estava metido. Das gurias, porém, eu seguia tomando surras obscenas.
Mas, por causa da minha coleção de vinis, de repente começaram a me convidar pras reuniões dançantes. E, pelos motivos errados, uma dessas noites seria marcante. Convidado pra uma festa na zona norte de Porto Alegre, distante de onde eu morava, decidi que levaria apenas compactos, mais leves que os LP's pra serem carregados debaixo do braço. Na leva de bolachinhas que separei havia uma preciosidade de alto teor erótico: o compacto de Je T'Aime, do francês Serge Gainsbourg, cuja comercialização, execução e radiodifusão tinham sido vetadas pela censura federal. Provavelmente, meu exemplar de Je T'Aime, que eu havia roubado, deveria ser um dos únicos da cidade. E, puta merda, não é que me passaram na raridade? Roubada de mim, ironicamente, experimentado ladrão de discos.
Armei um baita "bolo": "Bah, roubaram uma preciosidade! É o disco vetado pela censura", incitei aos brados. Minha indignação acabou ganhando adesão de um bando de adolescentes que estava na festa e saímos noite adentro no encalço do gatuno. Sem pistas, após muita andança, paramos defronte à residência que supomos ser do ladrão. E, a fim de intimidá-lo, fizemos chover uma saraivada de pedras sobre a casa. Completa imbecilidade. Só cessamos artilharia quando por detrás de uma janela avistamos o cano de uma espingarda apontando na nossa direção, pronto pra ser disparado. Debandamos feito uns loucos, correndo em disparada. Como desastroso saldo da noite, voltei pra casa sem meu precioso compacto e, fora a estúpida confusão em que havíamos nos metido, eu, mais uma vez, não fizera par romântico.