* Escritor, professor das universidades Estácio de Sá (RJ) e Unisul (SC). Foi conferencista da 1ª Jornada e participou de todas até a 10ª, em 2003.
A famosa Jornada de Passo Fundo foi cancelada. Foi o que me disse quem pediu este artigo. E por falta de verba. Fiquei perplexo. Algumas vezes ela foi realizada com nomes referenciais de diversas áreas, e com poucas verbas.
As primeiras Jornadas, aliás, tinham como grande encanto o conhecido small is beautiful. Com pouco se fazia muito. Com o passar dos anos, e a extraordinária retumbância que passou a ter, surgiu um mecenato, público e privado, que muito ajudou, mas agora, bem ao estilo brasileiro, tira a escada e deixa os organizadores com a brocha na mão.
Que sejam referidas as glórias da Jornada, mas também os percalços. Porque as derrotas nos ensinam mais do que as vitórias. Por amar o lema "a conversa clara garante o trato justo", cuja ruptura em alguns momentos me encheu de assombros nestes anos, lembro que o intelectual brasileiro é contra censura, vetos e exclusões - menos aqueles que pratica contra os próprios colegas.
Sabemos também que a inveja, um dos sete pecados capitais, vitimou 20% da Humanidade ainda nos albores do Éden. Só não foram 25% porque Abel teve uma irmã gêmea. O fratricídio perpetrado por Caim representou o genocídio de 20% da espécie humana.
É esquisita a ameaça que sacam, não do bolso do colete, mas de celulares e smartphones: "Não há 3,5 milhões? Então, não sai a Jornada!". Ora, a Jornada deve e pode ser realizada, como o foi algumas vezes em seus começos, nas dimensões que a mantenham, que não a interrompam. Nem só de pão ou de verba vive o homem. Durante a ditadura dos anos pós-64, O Pasquim foi para as bancas quando a redação estava na cadeia, deixando perplexos aqueles que tinham ordenado a prisão dos editores.
Muitos devem muito à Jornada e às heroicas personalidades que muito batalharam nela e por ela durante esses anos todos, aí incluídos, preferencialmente, docentes cujos nomes jamais foram memorados, por ser impossível citar todos. O nome deles é legião, e sem eles os alunos, seus familiares, amigos e vizinhos não teriam desenvolvido, mais do que o hábito, o gosto de estar por lá. Milhares de pessoas só terão visto escritores ao vivo em Passo Fundo, nas Jornadas. Em nenhum outro lugar. E talvez uma única vez na vida - e não apenas porque diversos conferencistas já morreram.
A Jornada está sofrendo de hiato, e tem cura. Precisa de um hífen. Precisa não de algo que separe, como o hiato, mas de algo que una, como o hífen. Enquanto isso não ocorre, estamos todos de boca aberta, sem hífen, pois nenhum dos leitores é um boca-aberta, o tal substantivo de dois gêneros para designar o bobalhão.
Hiato veio da anatomia e da medicina para a gramática, designando vogais juntinhas que entretanto pertencem a sílabas diferentes, de que são exemplos "dia", "frio" e "países". Talvez seja hora de invocar uma frase famosa que, parodiando o casamento indissolúvel, adverte ser perigoso separar o que está unido. Unir o separado também é perigoso.
Nos dias da Jornada, que procede justamente do latim diurnus,muita gente, de diversos países, passou muito frio em Passo Fundo. Ainda assim, numa das Jornadas, Millôr Fernandes, levantou bem cedinho e, vestindo apenas uma sunga preta, deu uma volta ao redor do hotel, como se caminhasse na praia de Ipanema ou em qualquer outra da orla carioca, menos da zona leste, porque o Rio, onde moro desde 2003, não tem zona leste.
Aliás, tudo no Rio se torna nacional, e o ex-governador Tarso Genro sabe disso, tanto que se mudou para a ex-capital da República, nem bem foi derrotado por José Ivo Sartori, o atual. Deste, aliás, esperemos que seja mais José do que Ivo para a Jornada, seguindo o exemplo do santo que fazia tudo e não falava nada (não há uma única palavra proferida pelo pai putativo de Jesus em toda a Bíblia), porque procedia justamente ao contrário de tantos, que falaram tanto nas Jornadas, mas por ela fizeram pouco, contrastando com aqueles que as têm garantido nesses anos todos, que falaram pouco e fizeram muito.
Houve momentos mágicos na Jornada. Josué Guimarães dizendo à esposa, Nydia, que pedisse a Mario Quintana para abotoar a braguilha, ele ia falar. E ela o fez com gestos. Carlos Nejar declamando seus poemas como um profeta enlouquecido. Otto Lara Resende às falsas turras com Fernando Sabino. Lya Luft dizendo que certo escritor tinha mel em lugar que não se pode declinar. Millôr Fernandes aplaudido ao ler um texto em defesa da democracia - e depois mais aplaudido ainda ao revelar que lera um trecho do discurso de posse do general Garrastazu Médici.
Tamanhas belezas precisam de reedições eternas. Se a Jornada de 2015 não vier, terá vindo em seu lugar a 11ª praga do antigo Egito, que atingirá em cheio a já lendária Passo Fundo, há décadas palco do maior evento literário do Brasil.