* Psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Colunista interino do PrOA.
Não lembro bem quando começou, deve ter sido no final do primário. Creio que foi somente no meu quarto ano que surgiram as questões de múltipla escolha. No começo era em uma prova ou outra, as recebi como uma novidade exótica e bem-vinda. Entre os colegas cresceu o olho, pois para colar era quase um convite.
Entre os professores deve ter sido motivo de comemoração com fogos, pompa e circunstância. Corrigir um grande número de provas com apenas uma grade ao invés de decifrar hieróglifos só podia ser um presente. Era o começo da massificação do ensino e essa forma de teste era apenas uma de suas manifestações. Não culpo os mestres, eles começaram a ser sobre-exigidos, apenas criaram uma maneira que tornava possível ter tantos alunos, tantas turmas.
A pergunta tradicional pedia um trabalho artesanal e uma verificação igualmente meticulosa e nesse momento instalou-se a linha de montagem na correção dos testes. O método antigo colocava cada um a pensar sua resposta, sua maneira particular de entender o que lhe haviam ensinado. Desde então, lenta e subliminarmente, o aluno começa a ser educado para achar a resposta certa, que já não é a dele, mas a que o outro lhe fornece. E o que é mais insidioso: uma ideia de que existiria a tal resposta certa.
No mundo real até existem respostas certas, mas também existem respostas aproximativas, algumas temporárias e muitas coisas sem resposta. O conhecimento e a sabedoria vêm de compreender os limites do que sabemos, e não de que tudo tenha sempre uma resposta certa. A modernidade se funda na dúvida, no conhecimento parcial, na insegurança dos princípios e dos valores, abandonando o campo das certezas que só a religião e o pensamento mítico fornecem.
Nas questões de múltipla escolha o caminho para ser bem sucedido é acertar o que o avaliador quer ouvir, supor o que o outro acredita como certo e não formular a própria solução. Não se trata mais de pensar por si mesmo, formular uma saída, mas de encaixar-se acriticamente nas proposições já prontas. Criatividade e pensamento crítico são completamente desestimulados. Na múltipla escolha, o professor só sabe do erro ou acerto, que aliás, pode ser casual, mas não sabe quanto o aluno aprendeu. Uma resposta "errada", por escrito, pode nos informar até que ponto o aluno entendeu a matéria: talvez tenha entendido a metade, quase tudo, quase nada.
Esse sistema ainda confinou a escrita às redações. Antes, sem nos darmos conta, aprendíamos a escrever em quase todas as disciplinas. Gastávamos o lápis, melhorávamos a caligrafia e nos firmávamos, com muito treino, na arte das palavras.
Aos pais que procuram boas escolas para seus filhos, esqueçam a propaganda que elas fazem sobre si. Examinem com atenção como seus filhos são avaliados, quão artesanal ou massificado é o esquema de avaliação. Isso é um instrumento seguro para saber o quanto a escola considera cada criança e como dá espaço para que o professor realmente conheça seu filho. Um ex-professor meu, hoje um querido amigo, Luiz Osvaldo Leite, diz que o bom professor é aquele que conhece seus alunos pela caligrafia. Eu acredito nele.