Foto: Facebook/Reprodução
Há um ano em Porto Alegre, o haitiano Sinais Saint-Vil, 33 anos, tem feito dupla jornada nas últimas semanas para concretizar o sonho de ter uma casa para chamar de sua. Durante o dia, ele faz medições, constrói pisos e ergue paredes de madeira. À noite, muitas vezes exausto, ainda tem pela frente o trabalho como gari, atividade que lhe rende cerca de R$ 800 mensais.
Quando terminar de construir a casa, Saint-Vil quer juntar dinheiro para trazer os dois filhos e os sete irmãos para o Brasil. O que ele não compreende é que, apesar de ter pago R$ 1,2 mil para um "brasileiro" por um lote na Ocupação Progresso, no bairro Sarandi, todo o seu esforço pode estar sendo em vão. Se os proprietários do terreno invadido em julho do ano passado conseguirem aval da Justiça para uma reintegração de posse, ele e as cerca de 100 famílias que estão no local podem ser despejados, como quase ocorreu no último dia 13.
Questionado pela reportagem se ele sabe que a área foi invadida e que venda não foi feita pelo verdadeiro dono do terreno, Saint-Vil diz:
- Não sei, não sei. Brasileiro negociou terra para nós, para quem não tem casa.
Zero Hora esteve na ocupação no início da semana e constatou que, pelo menos cinco haitianos - ou 10% das 50 famílias de refugiados que se encontram no local -, teriam pago entre R$ 1 mil e R$ 4 mil por casas e terrenos da área invadida em julho do ano passado. O "brasileiro" citado por Saint-Vil seria, segundo os próprios moradores, Jocimar Cardoso de Mello, o Carioca, ex-líder comunitário que comandou a invasão. No fim do ano passado, quando surgiram as primeiras suspeitas em relação à conduta do ex-líder comunitário, ele desapareceu da Progresso. Localizado por ZH, Carioca negou que tenha negociado lotes (leia a entrevista abaixo).
Veja a galeria de fotos:
Primeiro dos cerca de 120 haitianos que se mudaram para o local, Jimmy Charitoble, 28 anos, disse que entregou R$ 1 mil para Carioca pela área onde construiu a casa que divide com a esposa e uma prima. Ele morava de aluguel nas redondezas e soube que famílias estavam ocupando a área ao passar na frente do terreno. Foi orientado a conversar com o então líder comunitário, que fez a oferta. Após a permissão de Carioca para ocupar o lote, fez um empréstimo de R$ 7 mil para comprar material de construção.
A notícia da oferta de lotes se espalhou entre os haitianos que moravam ou trabalhavam na região. E o sonho de uma vida melhor, somado às dificuldades de comunicação, transformam os refugiados em presas fáceis. Há dois anos no país, Getoni Ghistinvil, 42 anos, juntou todas as suas economias para comprar, por R$ 4 mil, um casebre na ocupação. Com medo, ele não quis revelar o nome de quem lhe vendeu o imóvel, mas garante que todos as 50 famílias de haitianos pagaram para estar no local. Lurdia Jeune, 29 anos, também disse à reportagem que ela e seu pai, Lucien, investiram R$ 1,5 mil e R$ 2 mil em dois terrenos.
- Tem muita coisa que não entendo, muitas perguntas que gostaria de fazer. Os dois anos que trabalhei aqui, tudo se gastou. Estou com uma hérnia por causa do trabalho pesado. Passei por quatro hospitais e não consegui fazer a cirurgia. Estou há quatro meses esperando um exame. Vim para cá para ter uma vida melhor, mas me decepcionei - lamenta Ghistinvil, que espera contar com a ajuda da família para retornar a Porto Príncipe, capital do Haiti.
Vídeo mostra como os refugiados vivem na ocupação:
Área ocupada só poderá ser destinada para habitação popular
Na Ocupação Progresso, uma das casas dos refugiados foi constuída no estilo haitiano. Foto: Tadeu Vilani/Agência RBS
Ocupado por cerca de 100 famílias há nove meses, o terreno de quase 20 mil metros quadrados está entre os 14 locais que, no início deste mês, foram decretados como Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis). Com a promulgação da lei municipal, aprovada por unanimidade em dezembro do ano passado, essas áreas só poderão ser destinadas para a habitação popular. E foi baseado na nova legislação que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul suspendeu a reintegração de posse que estava marcada para o último dia 13.
De acordo com Ilisiane Vida, atual líder comunitária da Progresso, como a Progresso foi decretada Aeis, agora existem duas possibilidades: ou os moradores negociam a compra do terreno com o proprietário ou a prefeitura desapropria a área. Ela conta que assumiu a liderança da ocupação na tentativa de ajudar as famílias, principalmente de haitianos, que vinham sendo exploradas.
- Eles têm dificuldade de se comunicar, porque não falam bem o português, e reclamam de brasileiros que se aproveitaram deles por serem estrangeiros refugiados e com dificuldade de moradia. Exploraram o sonho, venderam a expectativa de ter uma casa, um pedaço de chão. Sabendo disso, eu fiquei muito triste e resolvi vir para cá ajudar, para conscientizá-los de que não têm que pagar, que isso é um direito.
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Coordenador do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana, Juliano Fripp afirmou que a entidade não admite que as lideranças "se tornem grileiros". Segundo ele, não foi feita uma denúncia contra o antigo líder porque, quando a informação sobre a venda de lotes chegou no fórum, Carioca já tinha saído da Progresso. Para evitar que situações como essa se repitam, a ideia é intensificar a realização de plenárias nas ocupações para explicar o funcionamento.
- 99% das pessoas que estão fazendo a ocupação são, de fato, pessoas que não tem onde morar, ou tinham e não conseguiram mais conviver com o pagamento de aluguel. As áreas, que não cumpriam sua função social, agora estão abrigando centenas de famílias. O direito à moradia é um direito constitucional, e nós estamos fazendo a parte do agente fiscalizador, inclusive ajudando município e o Estado, indicando onde estão os vazios urbanos.
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Contraponto
"Eu não sei de nada", diz ex-líder comunitário
Jocimar Cardoso de Mello, o Carioca, nega toda as acusações de que teria vendido lotes ou cobrado taxas de moradores da Ocupação Progresso. Segundo o ex-líder comunitário do local, os relatos viriam de pessoas que teriam sido influenciadas por seus desafetos.
O senhor vendeu lotes de terrenos invadidos ano passado no bairro Sarandi?
Não, não. Por quê?
Famílias da ocupação Progresso - principalmente de haitianos - relataram ter pago entre R$ 1 mil e R$ 4 mil por áreas que teriam sido negociadas com o senhor?
Não, não sei de nada disso. Lá foi uma ocupação, que foi cedida para o povo.
Pelo menos 10 pessoas disseram que ou pagaram pelos terrenos ou por taxas para cadastramento ou instalação de luz e água.
Não. Nós arrecadamos uma quantia de R$ 10 cada pessoa para comprar fiação. Compramos fio, botamos água. Foi isso.
Como os haitianos foram parar lá?
Nós fomos lá, o terreno estava vazio e eles marcaram o lote e entraram, entendeu?
Por que eles dizem ter pago até R$ 4 mil pelos lotes?
Isso aí foi influenciado por alguém que não gosta de mim, porque eu larguei de mão lá, né?
O senhor possui casa própria?
Sim, senhora.
Por que o senhor comandou a ocupação?
Para ajudar. Tenho parentes que não tinham onde morar, tenho filha, que é casada, e não tem onde morar.
O senhor tem ligação com entidades de luta por moradia?
Não, não tenho mais. Me desviei. É muito estresse. Uns querem apoiar, vão nas reuniões, mas outros não. Eles querem casa, mas não querem lutar. Querem morar, mas não querem lutar pela moradia. Se faz uma reunião, uma passeata, uns vão e outros não. Por isso, larguei de mão.
* Zero Hora