* Escritora, autora de Todos Nós Adorávamos Caubóis (2013). Escreve mensalmente no PrOA.
O shampoo que eu comprei diz: "reparação intensa, selagem das cutículas e blindagem dos fios". Não faço a menor ideia do que seja isso. O que sei é que não comprei esse frasco amarelo translúcido porque queria reparar (com intensidade), selar minhas cutículas (isso não fica perto da unha?) ou blindar meus fios. A questão é que todas as embalagens dizem alguma coisa que eu não entendo. Todas falam demais. E, mesmo que eu não queira dar bola para a linguagem publicitária disfarçada de discurso científico, continuo precisando de um shampoo. Então eu abro e cheiro. Ao tomar essa atitude, acho que me sinto um pouco antiquada, pois tenho a impressão de que a avaliação olfativa foi completamente obliterada pelos argumentos "racionais" que falam em 10 vezes mais força e brilho desde o primeiro uso, evitar escamas abertas e outros milagres incompreensíveis.
O discurso racional ao qual me refiro não é uma exclusividade de shampoos. Parece hoje que todos os produtos que nos rodeiam precisam oferecer algo a mais, o que não seria um problema caso esse algo a mais não fosse um atributo um tanto obscuro e bastante exigente para um ser humano comum.
Pegue as pastas de dente, por exemplo. Estarei mais protegida se usar aquela cuja embalagem fala em "total" e "12 horas"? O que uma pasta de dente sem a palavra "total" deixa efetivamente de fazer? Quanto tempo dura sua ação na minha boca? Qual a diferença na composição entre uma pasta ordinária e a de 12 horas? Será que essas horas a mais de proteção tem algum outro preço, além do que estou vendo na etiqueta? Uma substância cancerígena, talvez? Meus dentes vão ficar mais brancos se eu usar uma pasta whitening? Como elas fazem isso? Eu vou perceber a mudança a olho nu?
O curioso nesse cenário me parece ser o fato de que temos à disposição um catatau de informações, sobretudo sobre cosméticos e alimentos, nas revistas femininas e em todas essas publicações estranhas que encontramos próximas ao caixa do supermercado. Isso quer dizer que, para responder aos padrões de consumo que o mercado nos impõe, é preciso gastar um bocado de energia (devemos saber sobre o anti-frizz, as propriedades da lichia e o desodorante que hidrata as axilas). No entanto, fugir desse padrão e praticar, por assim dizer, o "consumo responsável" é igualmente exigente e dependente do discurso racional.
Esse rímel foi testado em animais? Essa margarina continua sendo vegana agora que faz parte de um conglomerado que comercializa embutidos? Foi provado que a marca de roupas que eu adoro estava usando trabalho escravo? É melhor fazer um pão branco em casa ou comer um sete grãos industrializado? O que posso passar no meu cabelo para largar de vez a química dos shampoos e, de quebra, parar de dar dinheiro para empresas internacionais milionárias? Quantos tutoriais vou precisar assistir no youtube para ser capaz de fazer isso sozinha?
Para estar dentro da norma ou transitar fora dela, precisamos saber muito. Mas talvez estejamos entendendo demais de temperatura de cozimento dos legumes (para manter os nutrientes) e bem pouco de empatia, tolerância e autoconhecimento, essas coisas inúteis, imensuráveis e que vêm sem embalagem