Porto Alegre demoliu na década de 1950 a Igreja do Rosário erguida por negros no século 19.
Um momento traumático da história da cidade, ao qual o senhor dedicou um livro, foram os quatro anos de sítio durante a Revolução Farroupilha. Por que isso é tão pouco lembrado?
Um dia, Sérgio da Costa Franco resolveu dirigir até o Shopping Center Iguatemi e se perdeu em um emaranhado de ruas desconhecidas. Comprovou a existência de uma Porto Alegre com a qual não tinha qualquer intimidade.
Existe uma outra Porto Alegre, no entanto, na qual ele circula com uma desenvoltura sem igual, conhecedor de cada arroio, de cada beco, de cada praça. É a cidade do passado, à qual dedicou anos de pesquisa em arquivos esquecidos e que desenterrou do esquecimento em obras como Porto Alegre e seu Comércio, Gente e Espaços de Porto Alegre, Porto Alegre Sitiada, Os Viajantes Olham Porto Alegre e Porto Alegre Ano a Ano.
É um trabalho que o mais notório pesquisador da história da Capital ainda não deu por encerrado. Dias atrás, encaminhou ao editor um punhado de laudas inéditas que serão acrescidas à nova edição de Porto Alegre: Guia Histórico, sua obra mais emblemática. Em forma de dicionário e construída a partir de laboriosas consultas às atas da Câmara Municipal e a outros documentos, o livro resgata a evolução das ruas e logradouros da cidade.
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Costa Franco nasceu em 1926, mas é como se tivesse vivido 243 anos - os 243 anos que Porto Alegre comemora no próximo dia 26. Na entrevista a seguir, concedida em seu apartamento no bairro Menino Deus, ele compartilha um pouco do conhecimento que acumulou sobre a cidade - e também do afeto que nutre por ela.
O senhor mudou-se para Porto Alegre em 1935. Qual foi a primeira impressão que teve?
Eu tinha sete anos e vinha de uma cidade muito pequena e sem movimento, Jaguarão (onde nasceu). O bonde elétrico eu já conhecia de Pelotas, mas aqui foi um choque. A cidade tinha uns 200 mil habitantes, mas para mim era uma metrópole.
Os limites de Porto Alegre eram bastante diferentes dos atuais.
Muito mais acanhados. Eu agora fiz um livro de encomenda sobre a evolução histórica da cidade. Nas plantas daquele tempo, de 1935, não aparecem Tristeza, Ipanema, nada da Zona Sul. Também nada além do Passo DAreia, que era o limite para o norte.
Como era a vida nessa cidade de 80 anos atrás?
Era tranquila. Morávamos no Menino Deus. Como gurizinho, aos oito anos, a minha mãe me mandava tomar o bonde e ir ao Centro fazer compras. Os bairros não tinham comércio. Eu pegava o bonde, ia o Centro, fazias as compras e voltava sozinho. Ninguém faz isso hoje com uma criança de oito anos.
O senhor reconhece na Porto Alegre de hoje algo daquela Porto Alegre de sua infância?
A mudança foi radical. Morei aqui no Menino Deus dos sete aos 12 anos, na José de Alencar. Naquele tempo havia vastos terrenos baldios, com cem metros de comprimento por 30 metros de largura. Dava peladas formidáveis.
O que daquela época persiste na cidade?
As diferenças são profundas. O que logo se destaca é a qualidade de vida. As casas não tinham grades, havia um outro modo de vida. No bairro, os rapazes saíam de pijama a caminhar na rua. De pijama, que na época era o equivalente ao abrigo esportivo de hoje. A pessoa chegava em casa, botava o pijama e depois saía. Era uma característica do arrabalde. Dependendo da rua, colocavam-se cadeiras na calçada para conversar. O movimento de automóveis era reduzidíssimo. Em 1950, eram 6 mil carros na cidade.
O que o encantava particularmente na cidade?
A primeira coisa é o Guaíba, onde a gente tomava banho. Conheci minha mulher, numa tarde de sábado, tomando banho em Ipanema. A cidade era muito aprazível. Até 1950, era uma cidade muito agradável, muito boa. Morei em vários pontos, conhecia muito bem. Hoje não conheço mais. Se me largam no Quarto Distrito, eu me perco. Não conheço nada para outros lados. Quando tinha automóvel, fui lá ao Iguatemi. Para voltar, me desorientei.
Nos anos 1960, estavam em curso os aterros que permitiriam o Beira-Rio e os parques.
Há quem diga que aquela região tornou-se uma espécie de novo centro da cidade.
É. Mas o centro para mim é o Centro Histórico. A idade e os joelhos estragados não me permitem mais conhecer essa outra cidade.
Como nasceu seu interesse pela história de Porto Alegre?
Porto Alegre era uma cidade sem historiografia. Não havia quase nada escrito. Os jornais diziam bobagens incríveis. Rigorosamente, o que havia era um livro cheio de erros, A Fundação de Porto Alegre, do Augusto Porto Alegre, de 1906. Ele falava em 1742 como data da fundação. Até acho que foi por erro gráfico, porque em 1742 não aconteceu nada em Porto Alegre. Em 1752, sim, houve a chegada dos açorianos. Mas todo mundo que escreveu depois usou essa data de 1742. Senti que a história de Porto Alegre era um campo virgem. Minha opção foi fazer um livro em forma de dicionário, com verbetes, o Guia Histórico. Passei uns três anos no arquivo municipal, registrando, anotando, e fiz uma ficha para cada rua, cada logradouro importante.
O 26 de março é a data mais adequada para comemorar o aniversário?
Porto Alegre tem duas fundações. A primeira é em 1752, com a chegada dos açorianos. Mas aí o que nasceu foi uma povoação precária, que nunca passou de um aglomerado de casas de palha na região da Rua da Praia, da Riachuelo, talvez da Duque de Caxias. Não se sabe nada sobre esse aglomerado, porque não ficou nada, não teve nem igreja. Naquele tempo, as comunidades nasciam quando se oficializava a freguesia. Foi o que aconteceu 20 anos mais tarde, em 1772, quando se cria a freguesia. Nesse momento, tratava-se de expulsar os espanhóis que tinham tomado Rio Grande em 1763. Porto Alegre, como vila organizada, sob comando de um militar, o José Marcelino de Figueiredo, nasce em grande parte em função disso. José Marcelino ergue um palácio para ele, ergue casa para a Junta da Real Fazenda, ergue a igreja. E daí o bispado cria a freguesia de Nossa Senhora da Madre de Deus. O 26 de março é o dia da fundação da freguesia.
Mas na época já havia uma população aqui?
Já tinha uma população, mas era inexpressiva. Tive o cuidado de investigar isso. Na época, o abate de carne para consumo era licitado perante a Câmara Municipal. Disputava-se uma espécie de leilão. Então se sabe quanto se arrematava para Viamão, para Gravataí, para Triunfo. E a mais baixa, a mais insignificante é a de Porto Alegre, então Porto dos Casais. Os açorianos chegaram e ficaram esquecidos aí. O governo os largou aí.
Até quando foi uma cidade açoriana?
A imigração dos Açores para cá nunca cessou, ela continuou ao logo do tempo. Foi realimentada. Até o fim do século 18 ainda é expressiva. Depois eles foram saindo. Os açorianos se disseminaram. O interior está cheio de famílias de origem açoriana.
Restou alguma herança deste início açoriano?
Talvez essas casinhas de porta e janela que existem na Cidade Baixa. Porto Alegre destruiu praticamente tudo que tinha do século 18.
Um fato pouco conhecido do passado, pesquisado pelo senhor, os enforcamentos na cidade. Como era isso?
Em 1816, dada a criminalidade alta no Rio Grande do Sul, Dom João VI criou a Junta de Justiça, um tribunal criminal, com poder de julgar em última instância, sem recurso. Esse tribunal começou a enforcar gente, a partir de 1820. Levantei 22 enforcados. Depois houve mais, porque a pena de morte existiu no Brasil até a República. Ocorreram dezenas de execuções em Porto Alegre, no Largo da Forca, hoje Praça Brigadeiro Sampaio.
Qual era o impacto na vida da cidade?
A forca não era permanente. A cada execução era uma briga, porque a Câmara Municipal não queria dar verba para erguer a forca, os juízes reclamavam. Os moradores iam assistir. O troço era um espetáculo. O réu era levado em procissão desde a cadeia até o lugar da execução, o oficial de justiça ia lendo em voz alta a sentença. Só faltava banda de música. Em geral, executavam escravos. Depois do enforcamento, o juiz mandava cortar a cabeça e exibir para o povo.
Outro livro do senhor, Os Viajantes Olham Porto Alegre, reúne relatos de visitantes estrangeiros feitos ao longo de mais de um século. Há algo de recorrente nesses textos?
O aspecto alemão é observado por quase todos. Muitos desses viajantes eram alemães e se sentiam em casa. Elogiavam a cidade por isso. No mais, o Guaíba sempre foi motivo de atração. Poucas cidades têm esse presente divino, um lago desse tamanho.
Como é que ocorreu essa germanização?
Os alemães vieram em 1824, ano de fundação de São Leopoldo, e em seguida começaram a ter forte influência em Porto Alegre. A partir de meados do século 19, aparecem até conflitos raciais, culturais, da população luso-brasileira e dos alemães. Em 1881 houve uma exposição brasileiro-alemã, organizada pelo Von Koseritz, que foi incendiada.
Qual era o peso dos alemães na população?
Eles tinham peso econômico. Populacional, nem tanto. Mas os viajantes que passam dizem que 20% da população era alemã ou de origem. Os alemães foram os industriais e também os comerciantes mais importantes. A certa altura, o gosto alemão na arquitetura predominou, a ponto de os próprios lusos menosprezarem o que tinham feito. Por isso não conservaram nada. Demoliu-se a cidade toda.
Essa influência germânica tornou Porto Alegre uma cidade diferente das outras capitais?
Ah, sim. Porto Alegre é muito alemã. E essa população alemã sofreu duas grandes guerras, com discriminação, humilhações e pressão, além de prejuízos graves. Houve depredações de casas comerciais, um negócio terrível. Isso abateu muito o próprio ânimo, a iniciativa econômica.
Um certo declínio econômico da cidade se explicaria por isso? Porque, quando se olham as estatísticas do começo do século 20, Porto Alegre era um polo industrial que ombreava com São Paulo.
Quase chegava lá. Tem uma estatística de 1910, por aí, em que a produção industrial de São Paulo é de 120 mil contos e a de Porto Alegre, 90 mil. Essa produção era muito germânica. As guerras influíram negativamente no desenvolvimento da cidade. Na II Guerra eu já era guri e fui testemunha das depredações. Vi quebrarem todas as lojas da Rua da Praia que tinham nomes alemães. Na I Guerra, foi mais grave até. Um quarteirão inteiro foi incendiado, ali na Siqueira Campos com a General Câmara.
O senhor diria que Porto Alegre não soube conservar seu patrimônio?
Do patrimônio histórico, arquitetônico, o que era luso-brasileiro não foi conservado. A Igreja do Rosário, do começo do século 19, foi demolida. A catedral era de 1780, construída pelo fundador da cidade, José Marcelino, e foi demolida para erguer-se a nova. Isso já no começo do século 20. Não havia a preocupação de conservar o patrimônio cultural. A Igreja do Rosário foi um crime. Ergueram no lugar um troço de gosto italiano, sem atrativo. A original não era um primor, mas tinha sido construída por uma sociedade de escravos ou de libertos. Os negros tinham feito a Igreja do Rosário. Só por isso ela merecia consideração. Foi demolida sem maiores protestos.
Porque predominou o pensamento do Partido Republicano, que valorizou a República Rio-Grandense. A bandeira dos farrapos virou a bandeira do Estado, o hino dos farrapos virou o hino do Estado etc. Não se falou mais de Porto Alegre, especialmente porque ela foi "leal e valorosa", leal ao Império.
O fato de Porto Alegre ter se mantido aliada ao Império teve papel decisivo para o Rio Grande do Sul continuar brasileiro?
Teve, porque os farrapos se obrigaram a manter aqui boa parte de suas forças, cercando a cidade, por quatro anos. O Rio Grande estava dividido. O norte da província não acompanhou. Foi um enfrentamento da Campanha, dos charqueadores, com Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, que tinham fortes ligações comerciais com o norte do país, com o Rio de Janeiro, e nunca foram farroupilhas.
O senhor disse que Porto Alegre era mais acanhada que Viamão e Gravataí, no século 18. O que explica ela se tornar a metrópole do Estado?
O principal fato foi ter sediado o governo. A geografia da cidade favoreceu o porto fluvial, que foi muito importante.
Então o desenvolvimento da cidade decorre, em parte, de o litoral gaúcho não oferecer condições favoráveis para a construção de portos?
Sim. Rio Grande foi a primeira capital, pode-se dizer, foi a sede da capitania, mas se revelou vulnerável aos espanhóis. Essa foi a principal razão para, depois, quando se funda Porto Alegre, a sede ser aqui. Porto Alegre era um porto fluvial que dava acesso a todo o interior e era bem protegido.
O senhor disse que no passado havia pouca pesquisa sobre a história da cidade. Isso mudou?
A bibliografia hoje é relativamente rica. Agora tomei conhecimento de um trabalho muito bom de uma professora da UFRGS (Tânia Marques Strohaecker), sobre os loteamentos. A expansão de Porto Alegre para os bairros foi toda à base de grandes empresas loteadoras. Essa professora fez o trabalho que eu gostaria de ter feito. Os caras compravam chácaras nos arredores da cidade e loteavam. Um dos grandes loteadores era também dono da Carris. Então a Carris estendia linhas de bonde para valorizar terrenos e vender terrenos.
A Carris não era empresa pública nessa época?
Era particular, uma sociedade anônima, e esteve na mão de Possidônio da Cunha, de Manuel Py, grandes proprietários de terrenos. Isso deu margem a críticas violentas, porque a Carris estendia linhas a lugares despovoados, em prejuízo do acionista minoritário que não estava interessado nesse tipo de expansão. O Caldas Junior, fundador do Correio do Povo, denunciava, dizia que a Carris estava a serviço de interesses imobiliários. A Carris estendeu linhas para a Glória e Teresópolis, que eram vazios demográficos.
E já tinham bonde. A gente pega os jornais da época e vê que as empresas loteadoras ofereciam churrasco nos domingos, e tinha bonde à vontade para ir para lá. Era um negócio de vender terreno.
Houve um tempo em que o senhor banhava-se no Guaíba. A cidade teve um jeito praiano?
Acho que sim. Cheguei a tomar na Praia de Belas. A geografia local mudou muito. O estádio Beira-Rio, o Parque Marinha, tudo aquilo é aterrado. O litoral passava pela margem da atual Avenida Praia de Belas.
Os aterros que a cidade sofreu ao longo da história foram bons ou ruins para a cidade?
Esse julgamento é difícil. A cidade sempre teve com o Guaíba uma relação de amor e ódio. O pessoal gostava do Guaíba, tomava banho, bebia a água. Mas este lado que costeia a Praia de Belas era raso, não permitia a navegação. Era forte a sugestão de aterrar aquilo, converter em terreno e local de moradia. Foi o que fez o Brizola quando prefeito, em 1955.
Mesmo no início da cidade, quando o Guaíba chegava à Rua da Praia, aterrou-se bastante. Quem fez isso foram os primeiros moradores?
Os moradores da Rua da Praia dilatavam os seus terrenos para os fundos. Aí nasceu a Sete de Setembro, com o nome de Rua Nova da Praia. Em determinado momento, quando foi urbanizada, era uma rua litorânea. Os aterros no Centro foram muito grandes e consolidados. Além da Siqueira Campos, tudo é conquistado ao rio. Para se construir o porto, se aterrou uma grande faixa.
Quem foram as figuras que influíram mais decisivamente nos rumos da cidade?
Nós tivemos três administradores marcantes: Otávio Rocha, Alberto Bins, que foi o sucessor dele, e depois o Loureiro da Silva. Eles foram remodeladores. A cidade que o Otávio Rocha encontrou era fechada, com becos de pedra irregular e ladeiras íngremes, uma cidade estrangulada, incompatível com o automóvel. Ele abriu a cidade, fez a Julio de Castilhos, abriu a Borges de Medeiros, fazendo a ligação do Centro com a Cidade Baixa. O Alberto Bins deu continuidade a isso, foi quem concluiu a Borges de Medeiros e a Otávio Rocha, ligou a Otávio Rocha com a Alberto Bins. O Loureiro da Silva fez a Farrapos, que é uma abertura fantástica para o Quarto Distrito e a área do São João, fez a Jerônimo de Ornellas e fez a Salgado Filho, que era outro beco, o Beco da Cadeia.
Nos anos 1920, abertura de Avenida Borges de Medeiros e construção do Viaduto Otávio Rocha.
Esses três nomes tinham uma visão de futuro?
Certamente. Mas era uma preocupação apenas com o aspecto viário. Não tiveram sensibilidade. Para um zoneamento industrial, por exemplo. Resultado: grande parte das indústrias saiu de Porto Alegre.
A abertura para os carros teve influência no processo de degradação do Centro?
Os centros das cidades sempre se degradam. Vivi uma época em que, se alguém precisava comprar alguma coisa, um pacote de manteiga, tinha de ir no Centro. As mulheres só iam nas lojas da Rua da Praia. O que acontece é que o crescimento do comércio nos bairros tornou anêmico o comércio do Centro. Existe uma campanha no sentido de revalorizar o Centro, mas é uma causa meio perdida. Nunca vai voltar ao que foi. Pela posição topográfica, num canto da cidade, com o trânsito congestionado, todo mundo evita o Centro. Eu passo meses sem ir.
O senhor gosta do que vê em Porto Alegre hoje, dos caminhos que a cidade está seguindo?
A cidade está estrangulada. Não houve desenvolvimento viário. Arquitetonicamente, há os que se insurgem contra as torres, mas isso eu acho fatal, morar empilhado para não ir morar tão longe, pela extensão que a cidade assumiu. E hoje todo mundo tem medo. É uma cidade gradeada.