* Jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente no caderno PrOA
Saía de um grande prédio público, acompanhado de uma amiga. Em algum momento, ela se dirigia a um canto do edifício, para ser revistada por seguranças. Intrigado, descobria que se tratava de um procedimento de rotina: assim como ela, outros iam naquela direção - todos, como ela, negros. Indignado, e por solidariedade a eles, entrei na fila, onde exigi também ser revistado. Ante a recusa do agente, que dizia que eu não precisaria passar ali por ser branco, insisti: sendo procedimento padrão, todos deveriam se submeter a ele, não apenas os negros. Terminava, com esse ato de resistência, meu sonho.
Freud escreveu que nos sonhos realizamos, de forma mais ou menos cifrada, desejos que não temos coragem ou não podemos, pelas convenções sociais, levar a cabo. Não creio que eu tivesse, numa ocasião análoga na vida real, a mesma bravura que tive no sonho: o que está instituído tem o poder de nos deixar, se não conformados, ao menos inibidos para agir. Enfrentar o que está naturalizado requer não só coragem, mas também outros que compartilhem do mesmo sonho; caso contrário, corremos o risco de sermos tomados por lunáticos Quixotes sem Sancho Pança.
Martin Luther King Jr. foi alguém que não se conformou em realizar seu desejo apenas enquanto dormia, mas dedicou sua vida a torná-lo realidade. Sonhou que algum dia a nação na qual nascera faria jus às palavras que a haviam fundado: que todos, independentemente de sexo, raça ou credo, pudessem ter direitos iguais. Seu anseio encontrou o de milhões de indivíduos, que até então talvez apenas tivessem ousado sonhar. Enfrentou os representantes do status quo e a própria morte, que sempre o rondava por atrever-se a ir contra a realidade de seu tempo. Um episódio de sua trajetória, quando desafiou o poder em Alabama para garantir o direito universal de voto, está retratado no belo filme Selma: Uma Luta Pela Igualdade.
Insatisfeitos com o mundo em que vivemos, também sonhamos com grandes revoluções, como comprova o sucesso de filmes de ficção como Jogos Vorazes, Divergente e O Doador de Memórias. Porém, vivemos em um momento da história em que nunca nos sentimos mais impotentes para agir, apesar de nunca termos tido tanta liberdade, como afirmou em entrevista o sociólogo Zygmunt Bauman, por ocasião do Fronteiras do Pensamento. Essa impotência seria não pela falta de boas intenções ou preocupação pelas questões sociais, mas pela falta de agentes - pessoas ou instituições - capazes de reunir esses anseios para torná-los ação.
Desacreditamos e desconfiamos das instituições que existem, e nos toma um sentimento de que somos muito pequenos para fazer algo contra "tudo isso que está aí" - expressão que traduz nossa ignorância diante de um cenário que parece complexo demais para nossa capacidade de compreensão. Ansiamos por "sair do Facebook", como diziam alguns cartazes das manifestações de junho de 2013, mas não sabemos para onde ir, nem por onde começar. Acabamos nos conformando em batalhar para garantir o próprio pão e circo diários e acompanhar, pelas telas, o desenrolar da história.
Contribuem para essa imobilidade as distrações e os confortos da vida contemporânea, que nos deixaram bastante mimados. Custa deixá-los de lado para lutar por algo, e arriscar a vida por uma causa parece loucura. Restam a estéril indignação, que vai pouco além de desabafos e queixas, e o cinismo, inclusive em relação a quem, mesmo quixotescamente, luta para mudar algo. As poucas transgressões coletivas são covardes e mesquinhas: sonegam-se impostos, acelera-se depois do pardal, esconde-se a muamba torcendo para passar despercebido na aduana.
Não à toa usamos a palavra sonho para designar, além do fenômeno psíquico, também o vislumbre de um futuro que se quer: ambos são movidos pelo desejo. Em nossos tempos tem parecido difícil sonhar muito além das aspirações individuais, incluídos aí os cada vez mais múltiplos sonhos de consumo. Seremos capazes de voltar a nos reunir em torno de grandes ideais, ou estaremos nos encaminhando para novas formas, ainda indefinidas, de articular anseios compartilhados? Perguntas ainda em aberto, cujas respostas só o tempo trará. Mas talvez nosso sonho coletivo, que Hollywood captura ao contar histórias de quem ousa arriscar a vida por uma causa, seja poder sonhar mais alto que apenas com uma vida tranquila e confortável.
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