* Professor e tradutor. Escreve mensalmente no PrOA
Em uma passagem do ensaio A Política e a Língua Inglesa, George Orwell examina um caso de degradação da linguagem por propósitos políticos que bem iluminaria ainda outra degradação, uma espécie de rebaixamento moral generalizado de toda a sociedade. Segundo Orwell, para entender seu ponto bastaria imaginar um professor universitário inglês vivendo com todo conforto e ativo na defesa do totalitarismo soviético (lamentavelmente, não foram poucos); como ele não poderia dizer às claras o que pensa - "Defendo o assassinato de oponentes quando se pode obter bons resultados com isso" -, é bem provável, prossegue Orwell, que recorresse a outro tipo de fraseado: "Enquanto é senso comum que o regime soviético exibe certas características que os humanitários talvez estejam inclinados a deplorar, devemos, creio eu, concordar que um certo cerceamento dos direitos políticos dos opositores é uma inevitável concomitância em períodos de transição, e que os rigores que o povo russo foi chamado a suportar são amplamente justificados na esfera das conquistas concretas" (a tradução que aqui vai é do amigo Pedro Gonzaga).
Orwell foi preciso em seu diagnóstico, reconhecendo que o palavreado pomposo ocultava a baixeza moral e política de parcela considerável dos intelectuais e acadêmicos seus contemporâneos. O transe ideológico dos intelectuais, contudo, iria mais longe no século 20: um dos mais célebres historiadores ingleses, Eric Hobsbawm, em entrevista de 1994 a Michael Ignatieff (disponível na íntegra no YouTube), questionado se a morte de milhões e milhões de pessoas seria justificada por uma vitória dos ideais soviéticos, responde com frieza e tédio apenas "Sim". Eric Hobsbawm pode ser considerado uma versão patológica do que as ideologias fizeram com algumas das mais brilhantes mentes do século, à esquerda e à direita. Mas o caminho que consolidou essa patologia como condição de normalidade nos meios letrados do Ocidente durante décadas (traço que persiste até hoje) contou com a colaboração de inúmeros escritores, intelectuais, artistas e acadêmicos. É essa tradição, e mais especialmente aquela que ficou conhecida pelo termo "nova esquerda" (em sentido bastante alargado), que o filósofo britânico Roger Scruton examina no livro Pensadores da Nova Esquerda, publicado pela É Realizações e com tradução do amigo Felipe Pimentel (que, não satisfeito em ser o melhor professor de nossa geração, por acaso de História, ainda resolveu prestar esse serviço à vida inteligente do país).
Roger Scruton, sobre quem escrevi na primeira coluna para o PrOA (4 de maio de 2014), submete um grande time de pensadores (Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre, György Lukács, Perry Anderson, entre outros), vários deles com contribuições inegáveis e valorosas a seus respectivos campos de atuação, a um exame crítico impiedoso, mas rigoroso e justo. Desse exame, nossa perplexidade talvez moderada com o caso imaginado por George Orwell para ilustrar a degradação moral que a ideologia política impunha à linguagem transforma-se, no mínimo, em horror. Um dos elementos mais incômodos que reconhecemos na atitude desses intelectuais é a afetação de uma superioridade moral que somente a adesão a uma ideologia - a sua - pode conferir. Essa soberba moral é, muito possivelmente, a principal responsável pela sistemática desconsideração dos fatos, das evidências mais elementares, sempre que fatos e evidências contrariem os interesses político-ideológicos a que aderiu o intelectual em questão.
É verdade que não existe mais, ao menos, não a sério, socialismo a ser defendido por adultos. A soberba moral da esquerda, contudo, permaneceu. Pode ser que hoje tal atitude se revele mais frequentemente na empáfia dos que comem brócolis, em detrimento da abominável carne, ou andem de bicicleta, em vez do venenoso carro. Mas por vezes ela aparece em registros mais graves, como naqueles que adotam posturas negacionistas em face dos relatos terríveis de quem vive sob regimes desprezíveis, como o venezuelano ou o iraniano, ou nos vergonhosos discursos que justificam (frequentemente com entusiasmo) o terror islâmico como reação ao demoníaco capitalismo ocidental. A história se repete, nesse caso como tragédia: quem está sob o mau tempo real nada sabe; quem sabe são os intelectuais da esquerda, vivendo nas "perigosas" democracias liberais do Ocidente.
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