* Professor e tradutor. Escreve mensalmente no PrOA
Na manhã de 7 de janeiro de 2015, por volta das 11h20, em Paris, dois homens mascarados empunhando metralhadoras kalashnikov invadiram a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo e mataram homens que nunca escondiam seus rostos e que sempre empunhavam seus lápis.
Nunca um contraste que sempre nos fora familiar tinha ganho contornos tão nítidos: mascarados e empunhando metralhadoras estavam o ódio, a intolerância e a inumanidade da ideologia que tentou matar a menina Malala no Paquistão, que levou ao cativeiro centenas de garotas na Nigéria, que decapitou orgulhosamente seres humanos, expondo na internet a abjeção como troféu de pureza; com os rostos limpos e os lápis em punho estavam a inteligência, o humor e a liberdade que descendem das melhores realizações humanas; de um lado, os assassinatos de Osama Bin Laden e do Estado Islâmico; de outro, a graça de Aristófanes e de Voltaire. Esse é o contraste que marca o atentado terrorista praticado por dois fanáticos muçulmanos naquela manhã e que resultou na morte de 12 pessoas, entre elas o editor do icônico semanário francês, Stephane Charbonnier, o "Charb", e os principais cartunistas da publicação, Wolinski, Cabu e Tignous. Desde aquela hora fatal, somos todos, e deveremos ser sempre, Charlie.
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Já de há muito que o audacioso enfrentamento do Charlie às ameaças do fanatismo islâmico, publicando sátiras a Maomé e a líderes muçulmanos, despertava o ódio dos obscurantistas e provocava verdadeiros "pogroms muçulmanos contra a liberdade de imprensa", nas palavras do genial Christopher Hitchens. Agora que os terroristas que mataram 12 inocentes aos gritos de Allahu Akbar ("Deus é grande") e "vingamos o profeta" finalmente pensaram fazer calar a voz da liberdade e da inteligência, multiplicaram-se e se fortaleceram as vozes todas que rechaçam a barbárie terrorista. Os governos democráticos do mundo todo; as organizações muçulmanas que representam milhões de indivíduos levando vidas pacíficas em todas as partes do globo; as grandes publicações internacionais, das mais liberais às mais conservadoras - todos souberam manifestar apropriadamente a perplexidade, o reconhecimento da tragédia da perda de vidas humanas e o repúdio inequívoco à truculência injustificável e indefensável dos facínoras, quer tenham agido de modo orquestrado por alguma organização, quer o tenham feito isoladamente.
Disse "todos", mas corrijo-me. Quem acompanhou, ao longo do dia 7, a cobertura do canal Globo News ouviu, não sem algum escândalo, as sórdidas manifestações de dois professores universitários que prontamente se puseram a culpar as vítimas. Como bem registrou Leandro Narloch em seu blog, Arlene Clemesha, professora da USP, disse que "esse jornal deve compreender que isso não se faz, é atrair o problema" e que "não se deve fazer humor com o outro". Batendo recordes de torpeza, o professor da UERJ Williams Gonçalves afirmou que "quem faz uma coisa dessas não pode esperar coisa muito diferente", entre outras estultices que vão adornar para sempre sua carreira. Talvez quisessem, a dra. Clemesha e o dr. Gonçalves, afetar seu desprezo ao que é europeu e ocidental, tão caro à esquerda acadêmica; talvez quisessem bancar os democratas plurais, exercendo livremente seu direito à divergência estendendo aos terroristas a condição de agentes políticos reagindo politicamente a ofensas, de modo muito compreensível, aliás. Erraram o alvo, os doutores. Não exibiram mais do que a medida de sua sordidez ideologicamente motivada.
Porque a verdade é que os homens que portavam metralhadoras automáticas kalashnikovs não estavam exercitando seus direitos democráticos; os homens que chacinaram 12 seres humanos movidos pela torpeza bestial de suas distorcidas convicções religiosas não estavam a se valer de suas liberdades; os homens que aterrorizaram a cidade de Paris e o mundo não estavam cultivando a divergência. Como tampouco estavam sendo pluralistas os acadêmicos brasileiros que envergonharam o país com a infâmia de suas declarações, culpando Charb, Wolinski, Cabu, Tignous e sua equipe por suas próprias mortes - atitude desumana somente menor que aquela dos carniceiros que levaram a cabo o atentado.
O atentado terrorista aos jornalistas e cartunistas do Charlie Hebdo estabeleceu, de maneira clara e distinta, uma linha que separa de modo definido e definitivo os dois lados da questão que temos a enfrentar: há o lado de todos os que acreditam efetivamente na democracia e na liberdade, que prezam de fato a divergência e que fazem verdadeira profissão de fé no pluralismo. Desse lado estamos nós, os milhões que choramos pelas mortes de quem tantas vezes nos fez rir. E é o único lado a se estar, porque do outro estão os sanguinários que matam por um cartum- e alguns acadêmicos brasileiros que a eles se irmanaram.
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