Porto Alegre vive dias de um despudor público e espetacular. O radar das conversas de grupos do WhatsApp, das timelines do Facebook e da audiência dos sites de notícias exibem a mesma coisa: mulheres nuas correndo pelas ruas da capital dos gaúchos.
Foram três casos em 11 dias, embora o último, no domingo, ainda não tenha sido esclarecido - não há registro na Brigada Militar, e uma testemunha relata ter sido uma corrida de pouco mais de uma quadra. O primeiro foi no Parcão, e o segundo, na Terceira Perimetral. Um quarto vídeo, de uma travesti, é compartilhado em celulares desde o dia 9 de outubro e, nos últimos dias, se espalhou com mais velocidade.
Mas o que leva uma pessoa a tirar a roupa e ir correr na rua? Em parte, descartando a hipótese de um golpe publicitário, é o velho debate do limite entre normalidade e loucura.
- Não dá para dizer que todos são doentes ou que tem patologias mais definidas. Tem de tudo, inclusive doentes - diz o psiquiatra Gabriel Camargo.
- Esse tipo deveria procurar uma ajuda médica. Ele pode precisar de alguma ajuda para recuperar o equilíbrio e a autoestima perdida por causa da exposição - complementa.
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A nudez pública é uma agressão à norma cultural vigente, para a professora de psiquiatria da Faculdade de Medicina da PUCRS Nina Furtado. A norma social pede que se cubram os genitais:
- Existe um transtorno de exibicionismo, que é a exposição dos órgãos para chocar os outros. A necessidade de ser visto e chocar, que é uma forma de constranger, chamar atenção ou de controle sobre os outros pela nudez.
Se é necessariamente uma doença ou não, Nina acha que é muito difícil definir a normalidade na questão da exposição. Como não é possível escapar das normas sociais, é preciso ter cuidado com o gesto:
- No momento em que começa a causar algum tipo de sofrimento para a pessoa ou para outros, pode ser preocupante. A exposição em excesso começa a entrar na área da doença.
No convívio em sociedade, existem convenções que regem nossa unidade cultural. Pela teoria freudiana, explica Nina, as normais sociais e culturais que formam o superego (uma espécie de síndico chato do condomínio da mente) individual e grupal não aceitam a nudez pública e a reprimem.
Os dois profissionais concordam que a divulgação dos casos na imprensa e nas redes sociais pode estimular o comportamento, mas é preciso que haja uma pré-disposição a esse tipo de postura, ou seja, que as pessoas já tenham uma vontade de se expor.
- Pode ser uma ansiedade social por notoriedade. Pessoas com nítidos traços neuróticos, muito desejosas de publicidade e sem muito controle dos impulsos. Os psicóticos, que estão fora da realidade, são os mais suscetíveis - diz Camargo.
Nos casos de protesto
Para Nina, ficar nu como forma de protesto tem sentido porque traz bastante exposição para a mensagem. Os nus públicos grupais, segundo Camargo, são mais um movimento de natureza sociológica do que patológica, embora notícias como a dos pelados da bicicleta também rendam compartilhamentos no Facebook e uns bons cliques aos portais de notícias.
Um exemplo que teve bastante repercussão foi a Pedalada Pelada em dezembro do ano passado em Porto Alegre. Na ocasião, dezenas de ciclistas andaram pelados pelas ruas da cidade para, segundo eles, "mostrar a fragilidade daqueles que utilizam a bicicleta no trânsito".
Golpe publicitário?
Ao contrário dos outros casos, a pelada que correu no domingo não tem fotos produzidas pelo público - o que levantou o debate se não seria o caso de uma ação de marketing. Marcelo Aimi, professor da pós-graduação da ESPM-Sul, acredita que é estranho não ter mais referências, o que poderia apontar para uma ação comercial.
- Se for uma campanha, é o momento do teaser, quando a marca lança uma peça de comunicação sem assinatura. Produz apenas o conceito - diz Aimi.
Caso seja revelada uma marca por trás disso, seria uma ação de guerrilha, explica o professor. É um tipo de ação que usa poucos recursos e uma ideia inovadora capaz de chamar a atenção da imprensa:
- O objetivo é criar um viral e tornar a marca conhecida pelo compartilhamento de conteúdo do público.
Existe o risco de a ação ter o efeito reverso:
- Tu estás trabalhando com a confiança. A pessoa compra isso como verdade e depois tu descobres que era mentira. As pessoas podem se sentir enganadas. É uma estratégia de bastante risco.
Ficar pelado em público é crime
De certo modo, o Direito exerce o papel de superego oficial. Por ser baseada nos hábitos populares e nos costumes, a legislação contempla a ideia de que o pudor é bom para o convívio social.
Ficar pelado em público, portanto, é crime. O artigo 233 do código penal brasileiro diz que quem "praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público", pode receber pena de "detenção, de três meses a um ano, ou multa". A lei, contudo, é de 1940:
- Com as regras que temos hoje no código penal, dificilmente alguém vai cumprir pena de prisão neste tipo de caso - garante Lúcio de Constantino, advogado criminalista e professor universitário.
Mas por que é crime? Segundo Constantino, os usos, os costumes e a tradição têm uma lógica do pudor:
- Em razão da nossa civilização, que tem uma forte influência cristã, a questão da obscenidade se torna muito aguda. Isto acaba se traduzindo na legislação.
Há ofensa, porque o nu ofende o pudor alheio, diz o advogado:
- Se está correto ou não é outra coisa. A lógica é proteger a intimidade de uma pessoa que está nua e também a sociedade do ato obsceno.
O advogado e professor de direito penal Amadeu Weinmann concorda:
- É um crime contra os costumes. A lei não é mais do que a vontade do povo em determinada época. Os hábitos mudam com a sociedade. Talvez, no futuro, a gente estranhe ver alguém vestido na rua.
Para Weinmann, não é aceitável andar nu na rua, porque a sociedade não generalizou o costume:
- A roupa ainda faz parte da prova da civilização.