*Doutor em Teoria Literária, autor de Conversas Apócrifas com Enrique Vila-Matas
A tradição literária ocidental de quando em quando flerta com o registro autobiográfico, mesclando esse flerte com um questionamento do próprio estatuto do literário. Assim são os Ensaios de Montaigne ou as Confissões de Rousseau, ou obras mais recentes, como a Recherche de Proust ou os Diários de André Gide, para ficar nos franceses. Em paralelo a isso, porém, existem aqueles livros que recusam o nome próprio ou a dimensão da subjetividade, como o Robinson Crusoe de Defoe, ou o Gordon Pym de Edgar Allan Poe, exemplares desse registro distanciado (o relato foi repassado por terceiros e o escritor é apenas um mediador).
O norueguês Karl Ove Knausgård surgiu recentemente com sua contribuição para essa tensa e contraditória tradição, a série de romances intitulada Minha Luta, com os dois primeiros dos seis volumes já disponíveis em português. Tensão e contradição são recorrentes na poética de Karl Ove, não apenas no que diz respeito a esse "dizer" e a esse "esconder" do eu e da autoria. Em Minha Luta, o narrador busca a transcendência ao mesmo tempo em que a nega e a diminui, tornando-a, paradoxalmente, quase imperceptível. É um paradoxo porque grande parte do esforço de sua ficção é o de alcançar essa transcendência, que é em seguida negada ou, em casos mais sutis, suavizada.
Lá pela metade do primeiro volume, A Morte do Pai, por exemplo, o narrador está acordado às quatro da manhã. A mulher grávida dorme. Ele esquenta "um prato de espaguete com almôndegas no micro-ondas" e começa a refletir sobre o fato de estar de pé na madrugada. Tudo começou como um "ideal de estudante", pois a "noite estava relacionada com liberdade". Ao mesmo tempo em que se sente essa pulsação angustiada do passado, numa espécie de heroísmo da nostalgia - com palavras como "ideal" e "liberdade" -, está também presente o cenário meticulosamente construído: a barriga imensa da mulher deitada, o micro-ondas, os talheres, o escritório no dia seguinte, a mala com o computador.
Essa alteração entre um registro e outro dá a impressão de algo prestes a explodir, de algo denso e profundamente trágico que o escritor só pode insinuar, tatear. Também nesse trecho retorna a imagem que organiza toda essa torrente de rememoração, que justifica o próprio impulso de escrever, que é a figura do pai. "A noite era dele", escreve o narrador, estar sozinho à noite era "uma necessidade que eu tinha em comum com meu pai". Assim como a transcendência se mescla ao prosaico, o registro íntimo e cotidiano (o pai, a esposa) se mescla ao registro mais amplo do gênero literário (a autobiografia, a memória).
Algo importante no projeto Minha Luta é que há uma compulsão em jogo -a do autor de reviver, retraçar e recontar a própria vida e traumas, e a do leitor de segui-lo, de criar seu próprio percurso parasitário em paralelo à "vida" que essa ficção mastodôntica nos oferece. Há também a sabedoria do autor de costurar seus arroubos ensaísticos com esse progressivo prestar de contas do cotidiano, como se dissesse ao leitor, de quando em quando, que é uma pessoa como qualquer outra. Em alguns momentos, Karl Ove abandona a sedução de seu tema, do escândalo familiar, da revelação dos segredos. O que importa, no fim das contas, nos diz o narrador em A Morte do Pai, é a forma, é dela e de sua irrupção incontestável (ou seja, "o livro precisa ser apresentado assim e nenhuma outra possibilidade é aceitável") que nasce a ficção transformadora, inovadora, relevante.
Se entendi bem os dois volumes já lançados por aqui, a forma de Minha Luta é sobretudo essa interpolação do cotidiano e do metafísico, da identificação do leitor e do isolamento trágico daquele que narra a própria vida. Ainda resta muito a ver, mas um elemento que salta aos olhos na passagem do primeiro volume para o segundo é o aumento na quantidade de reflexões sobre o fazer literário. Com o primeiro volume, o narrador tenta dar conta da morte do pai; no segundo, Um Outro Amor, ele passa a lidar com suas próprias mudanças, com sua maturidade como indivíduo e como escritor. A reflexão estética coordena essa travessia, com seus comentários sobre a visualização e a fruição de obras de arte. O narrador insiste em seu fascínio pela "referência à realidade visível" e seu distanciamento de certa arte contemporânea que recusaria essa proximidade com o espaço do "figurativo" ou da representação "reconhecível" dos elementos do mundo.
Pois diante da presença, diante do quadro, das grandes obras, ele se emociona, chora sem controle - e o mesmo acontece toda vez que lembra do corpo morto do pai na funerária. A ligação desses dois extremos, a sensibilidade pela beleza da arte, e o desespero decorrente da visão do corpo do pai, é a grande luta do narrador; ou seja, a conjunção desse micro (a biografia, a vivência familiar) com esse macro (a tradição, a fruição da arte e, consequentemente, o espaço do narrador como criador, como "nome de autor" dentro desse contexto).
Nunca é só o relato ("sincero", "confessional") de um filho que perde o pai, no primeiro volume, ou de um homem de meia idade casado pela segunda vez, com três filhos, e que decide mudar de cidade, no segundo. O que está em jogo, paralelo a isso, é o posicionamento desse homem dentro da tradição, dentro do espaço do exercício da linguagem, a performance da criação de um estilo e de uma voz.
Sucesso e polêmica
O escritor norueguês Karl Ove Knausgård publicou entre 2009 e 2011 seis volumes autobiográficos que, coisa rara para um livro do gênero, tornaram-se sucesso absoluto na Noruega (venderam meio milhão de cópias em um país com cinco milhões de habitantes). Também provocaram polêmica por terem o mesmo nome da biografia de Hitler. e angariaram atenção internacional.
Dois volumes já saíram no Brasil:
Minha Luta, v.1:
A Morte do Pai
De Karl Ove Knausgård
Tradução de Leonardo Pinto Silva.
Companhia das Letras, 512 páginas, R$ 52 (impresso) e R$ 32,50 (e-book)
Minha Luta, v.2:
Um Outro Amor
De Karl Ove Knausgård
Tradução de Guilherme Braga.
Companhia das Letras, 592 páginas, R$ 59,50 (impresso) e R$ 39,50 (e-book)