Foi o amor que trouxe Wilson Antônio de Souza para o Menino Deus.
Criado no Partenon, veio morar no bairro da mulher depois do casamento. Nos últimos 40 anos, sempre ao lado de Rosa, colecionou memórias que ligam a Rua Silveiro ao crescimento dos três filhos e à chegada dos netos. Da porta do mercado da família, rebobina saudoso cenas que mostram o que o Menino Deus era e no que se transformou. O lugar resistiu a abandonar o jeito interiorano, mas, como o próprio Wilson constata, perdeu a batalha.
- Quando cheguei aqui, ainda tinha bonde no Menino Deus. Eu era cobrador de ônibus, e o bonde era concorrência - relembra o comerciante de 66 anos.
Especial Aniversário de Porto Alegre:
VÍDEO: Anfitriã do Bairro
Galeria de fotos: O Menino Deus em 10 imagens
Primeira Pessoa: "Fui recebida com carinho no Menino Deus"
O trajeto exato da linha, Wilson não garante. Recorda que o ônibus passava pelas principais ruas do bairro até chegar ao ponto final, no Centro, ao lado da prefeitura. Lembra que saía da Miguel Couto, pegava a José de Alencar, Getúlio Vargas, "descia ou subia a Borges". E tudo tinha que ser percorrido em 17 minutos:
- O cobrador não ficava sentado, não. Tinha que levantar, cobrar os passageiros, gritar na janelinha qual era a próxima parada. Hoje, com esse trânsito, em 17 minutos não daria para fazer nem a metade.
Da janela do ônibus, Wilson via o bairro crescer. Foram os últimos cinco anos, já longe do bonde e à frente do mercado da Silveiro, que lhe reservaram o grande espanto. Um dos maiores baques, para ele e para toda a vizinhança, foi ver os muros do Estádio dos Eucaliptos virem abaixo para dar lugar a prédios.
- Alguns jogadores vinham almoçar no restaurante da minha sogra, que ficava aqui do ladinho do mercado. Eu sou gremista, mas como não sou muito fanático, não me incomodava. Me lembro que o Falcão, o Dorinho, o Bráulio, que já estavam ficando mais famosinhos, iam fazer churrasco ali nos fundos. Não dava para ser visto tomando cerveja aqui na frente, né?
O desaparecimento do Eucaliptos, que em tempos dourados tanto movimento trazia para o antigo restaurante, é mesmo uma das maiores mudanças na paisagem do Menino Deus. Traduz uma tendência no bairro familiar, de gente boa, que passeia com cachorro sempre no mesmo horário, das ruas arborizadas, dos vizinhos que sabem seu nome. Terrenos baldios tendem a virar prédios; casas e pequenos comércios tendem a virar clínicas médicas, pet shops e supermercados para atender a multidão que chegará com os novos apartamentos que vão surgindo aqui e ali. É o que acontece por toda Porto Alegre, e o som constante de obras no entorno do mercado de Wilson só mostra que por ali não será diferente.
- Todo mundo está vendendo as suas casas por aqui. Isso tudo - fala enquanto aponta para a quadra - vai virar prédio. Pra mim, que não sou mais um guri, está ficando complicado. Talvez eu me mude para a praia com a Rosa. Lá ainda tem aquele jeito de Menino Deus de antigamente.
Novas histórias tão cheias de alegria e saudosismo quanto a de Wilson e Rosa terão este novo Menino Deus como cenário. Em alguns anos, o pequeno Santiago, de apenas quatro meses, deve ser personagem de uma delas. O bebê faz sua estreia no mundo morando num dos endereços mais famosos de Porto Alegre, um casarão exaltado em crônicas como um dos melhores lugares para se viver.
- Às vezes, à noite, a gente vê flashes pelos frisos da janela. Quando espiamos, percebemos que tem gente posando com a casa ao fundo - conta o biólogo Adriano Scherer, que comprou a residência que pertenceu à família do escritor Caio Fernando Abreu. Desde 2012, mora no número 12 da Rua Doutor Oscar Bittencourt com a mulher, Fabiana, e os três filhos.
O casal sabe o quanto o Menino Deus se orgulha de Caio, que era quase um embaixador do bairro e falava tanto do sobrado que a casa parece fazer parte de sua obra. Cientes disso, quase não mexeram na fachada original da residência e não se incomodam com o discreto culto ao endereço. Já até deram sinal verde para um grupo que pediu para colocar em frente à casa uma placa homenageando o escritor, morto em 1996.
Adriano e Fabiana já estão acostumados com quem tira fotos à frente da casa que era de Caio Fernando Abreu - Foto: Adriana Franciosi
Adriano e Fabiana irão contar para Santiago a história do famoso ex-morador da casa. Quando se interessar em saber mais sobre Caio, o menino lerá textos que descrevem um bairro não mais com bondes, como nos tempos de namoro de Wilson e Rosa, mas ainda sem grades nas janelas e sem prédios gigantescos fazendo sombra no jardim. Quem sabe fique por conta do próprio Santiago modernizar algumas palavras de Caio sobre o sempre tão amado Menino Deus:
"Não é verdade que eu esteja apaixonado por Porto Alegre. Somos apenas bons amigos. Aliás, nem moro em Porto Alegre. Moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta".
O Menino Deus em: "Anfitriã do Bairro":