Uma das maiores lideranças da esquerda nacional reveladas no século 21, Manuela D’Ávila surpreendeu ao anunciar recentemente a desfiliação do PCdoB, único partido da sua trajetória. Nesta entrevista, ela aborda os motivos que a levaram a tomar a decisão e projeta um movimento suprapartidário que entrelace as pautas raciais e de gênero com os ideais econômicos.
Manuela também fala sobre a hipótese de voltar a concorrer e as dificuldades da esquerda nas eleições municipais e no diálogo com as novas formas de trabalho.
Confira abaixo trechos da entrevista, em texto e vídeo. Os formatos contêm perguntas diferentes.
Foram 25 anos no PCdoB. Lá a senhora chegou a ser considerada o futuro da esquerda nacional. Por que saiu? E quais os planos?
A relação não acaba por única razão. É uma discussão que fiz discreta e internamente, como merecia ser o desfecho de uma relação tão importante da minha vida. O que o PCdoB me deu é imensurável.
Uma das questões importantes foi a federação com o PT. É um partido muito importante para a esquerda, mas a relação interna na federação fez com que o PCdoB perdesse a identidade pública e a possibilidade de tomar determinadas decisões sobre o futuro.
Mesmo sendo um partido pequeno, o PCdoB conseguia fazer a disputa com autonomia. Com um partido tão grande como o PT, isso nos foi tirado, minimizado.
Também tomei a decisão de que sair do PCdoB não seria vinculado à escolha de outro partido. Acredito nos partidos, mas é um rito importante para que eu possa refletir.
Pesou a possível pressão de parte da esquerda para sufocar pautas de gênero, raça e identidade com a justificativa de que isso pode dar tração ao bolsonarismo?
Jamais me senti sufocada no PCdoB. A frente ampla é o centro da tática correta que tivemos no Brasil para enfrentar a extrema direita. Foi imprescindível para que o Lula se tornasse presidente, mas nós precisamos ser a esquerda da frente ampla. Se a frente é ampla, é do centro até a esquerda. A esquerda não pode prescindir de fazer as disputas daquilo que acredita.
Determinados discursos, por exemplo, "não vamos fazer a disputa de valores", são equivocados. Nos colocam na defensiva. Eu quero disputar valores: solidariedade, empatia, a ideia de que toda a vida humana merece dignidade.
Quando tivemos o debate do projeto de lei 1904, que obrigava meninas estupradas a se tornarem mães, muitos diziam que não tínhamos que travar a disputa. Travamos e ganhamos o centro político, enterramos aquele projeto de lei a partir de uma aliança que as mulheres construíram, da esquerda ao centro, disputando o valor. Estuprador não é pai, criança não é mãe.
Sobre como eu me imagino militando e quais disputas eu quero fazer, num certo sentido, sim (o contexto pesou na saída do PCdoB).
A senhora pretende ser parte de um movimento suprapartidário guiando novas lideranças ou poderá buscar um partido para voltar a concorrer?
Poucas pessoas de 43 anos disputaram oito eleições como eu. Jamais me furtei a fazer disputas eleitorais e a oferecer meu nome, desde que ele representasse um movimento de construção de unidade e de um programa de disputa da sociedade.
Disputei dois segundos turnos contra o bolsonarismo, em 2018 (vice-presidência da República) e em 2020 (prefeitura de Porto Alegre). Diante do que eu vivi, um nível de violência que alguns seguem vivendo, acho razoável ter feito a opção de não estar presente em uma eleição.
Em 2022, coloquei meu nome à disposição (para o Senado) se pudesse celebrar a unidade necessária, só que o nosso campo político achou por bem compor com outros nomes. E está tudo bem. Muita gente achava que eu tinha que concorrer a deputada. Acho que fiz a escolha certa, apoiando candidaturas que representavam a renovação do nosso campo. Nunca decidi que não concorreria mais.
Os meus avós viveram até 96. Tenho pelo menos uns 50 anos pela frente pra encher o saco da extrema direita. Nesse momento, estou me esforçando a organizar um movimento suprapartidário pelo fato de que nós, mulheres progressistas, podemos apresentar um programa para o país. Eu quero fazer isso livremente. E, quem sabe, no futuro, em alguma organização partidária.
A esquerda brasileira nasceu no chão de fábrica, nos sindicatos e nos trabalhadores celetistas. Tudo diminuiu. Isso está na origem da atual dificuldade da esquerda?
A transformação do mundo do trabalho é central para entendermos as razões de um certo distanciamento da esquerda dos setores mais populares. A esquerda é diversa, mas a história do PT começa nos anos 80, em São Bernardo do Campo, se relacionando com uma classe operária industrial que não é mais majoritária. Tem tudo a ver.
A transformação impacta os partidos que pretendem se relacionar com trabalhadores e trabalhadoras. Temos uma caminhada grande para compreender.
A direita tem vendido com sucesso o sonho de ser bem-sucedido sendo empreendedor individual e autônomo. Há espaço para todo mundo nessa conta? A esquerda deve atuar na mesma lógica ou apresentar uma alternativa?
Apresentar uma alternativa que leve em conta que parte desses empreendedores, entre aspas, se encontra conosco na ideia da precariedade do mundo do trabalho, da superexploração, da humilhação. Acho razoável quando uma pessoa me diz que não quer ter patrão. Quando uma mulher diz que não quer ter um patrão, eu consigo compreender o que é ter um horário para pegar a criança na escola ou ter um filho doente e ouvir a pessoa dizer que não tem nada a ver com o teu filho doente, que você tem que chegar no horário. Todas essas camadas precisam estar na nossa agenda.
Veja o nosso companheiro que se elegeu no Rio (Rick Azevedo, do PSOL) trabalhando com o tema da escala 6 por 1 (mais votado do PSOL para vereador, ele ganhou notoriedade pela defesa do fim dos seis dias de trabalho com um de descanso). As pessoas querem alternativas à superexploração, e temos falhado.
A senhora tem defendido que questões raciais, de gênero e identitárias estão atreladas ao debate econômico. Há críticos dessa conjugação na esquerda.
Essas pessoas não conseguem entender que as trabalhadoras e os trabalhadores também existem sendo mulheres, negros e negras no nosso país. As características fazem parte das vivências delas no trato da polícia, na relação com o mundo do trabalho e da educação.
É um reducionismo imenso. Tentam enxergar o problema como se ele tivesse que ser visto que nem cavalo que coloca freio dos dois lados e não consegue olhar a realidade de maneira multifacetada.
A desigualdade brasileira se estrutura a partir de raça e gênero. Qualquer pensamento que fuja disso não quer combater a desigualdade.
Quando a senhora começou, a esquerda denunciava o sistema. Foram cinco vitórias eleitorais históricas à Presidência depois disso. Hoje a esquerda está dentro do sistema, faz a defesa dele e das instituições democráticas. E quem denuncia é a direita. A inversão incomoda?
Não é simples. É muito significativo o que nós conseguimos no Brasil desde 1988. A gente acaba tendo que defender instituições que representam, se não tudo, avanços importantes.
De outro lado, a defesa disso faz com que a gente se confunda com um lugar que não é o nosso. É um paradoxo real. Defender instituições que ainda são insuficientes diante de uma extrema direita que quer liquidá-las ou se colocar como alternativa a elas. É uma situação vivida por forças progressistas em todos os lugares onde a extrema direita avançou. Eles acabam se colocando do lado do povo contra o lugar no qual são identificadas todas as mazelas que vivemos: o sistema político, midiático e judicial.
A esquerda, para o curto e médio prazo, precisa superar a figura do presidente Lula?
A esquerda brasileira, no próximo período, precisa do presidente Lula para derrotar a extrema direita. Além disso, o presidente Lula é um ser humano. E, historicamente, nós continuaremos existindo muito além da presidência dele.