Estudo técnico contratado pelo IPE Saúde indica que mais de 97% dos 241 hospitais credenciados para a prestação de serviços no Rio Grande do Sul terão aumento no faturamento com a adoção das novas tabelas de remuneração previstas para entrar em vigor a partir do próximo domingo.
O levantamento aponta que, dentre mais de duas centenas de instituições, seis terão queda na receita com pacientes do IPE Saúde, plano que assegura a atendimento a cerca de um milhão de servidores públicos estaduais e seus dependentes. A autarquia é controlada pelo governo estadual.
Apesar da projeção de ganhos mais elevados para a maioria e de perdas menores para a minoria, as duas associações que representam os setores hospitalares fazem oposição aos novos critérios de remuneração, alegam perdas insustentáveis e já cogitaram suspender a assistência dos segurados.
O estudo foi realizado pela Unimed Central de Serviços. Essa organização não é operadora de planos médicos e atua na assessoria de entidades públicas de autogestão em saúde. Coube à Central de Serviços fazer a projeção de receitas a partir das atuais e futuras tabelas. As novas referências reduzem os valores pagos pelo IPE Saúde por medicamentos e dietas dos pacientes, ambos com constantes apontamentos de suposto sobrepreço pelo Ministério Público, e aumentam as cifras dos materiais hospitalares utilizados e das diárias e taxas.
Com as regras atuais, considerando os atendimentos de janeiro a dezembro de 2022, os hospitais faturaram R$ 1.592 bilhão na relação com o IPE Saúde. Caso estivessem em vigência as novas tabelas, o estudo aponta que as instituições receberiam R$ 1.615 bilhão - um acréscimo de 1,49%.
Divergência
A principal divergência está na redução da tabela de remuneração por medicamentos e dietas hospitalares, modificações recebidas com resistência pelas entidades do ramo. Além do Ministério Público, a Contadoria e Auditoria Geral do Estado (Cage) têm cobrado do IPE Saúde a adoção de providências para que seja praticado o preço da nota fiscal para o reembolso. Dentre os principais argumentos para a mudança, estão as normativas da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), organismo ligado ao governo federal, que proíbem os hospitais de obter lucro na cobrança por remédios.
Também é vedada a aplicação do Preço Máximo ao Consumidor (PMC), fórmula que pode ser utilizada somente no comércio varejista, nas farmácias. A norma diz que os hospitais devem apenas receber o “reembolso do valor pago pelo medicamento”. Uma decisão de junho de 2022 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) reforçou o entendimento de que “hospitais não podem lucrar com remédios”.
O IPE Saúde sustenta que, na prática, isso não é o que acontece. O estudo aponta que as instituições usam a tabela Brasíndice, publicação de preços ligada ao setor privado, para fazer a cobrança pelos medicamentos, usando os “valores máximos” de referência. Essa modalidade, conforme o MP e o estudo, promove distorções ao longo dos anos.
Um exemplo: o “fluconazol 100 ml” tem valor de compra pelos hospitais de R$ 8,73, mas eles cobrariam do Ipe Saúde a quantia de R$ 201,62 pela utilização. Uma margem de lucro, cuja prática é vedada, de 2.310%, aponta o estudo. O documento define o patamar da cobrança como “inacreditável e inexistente em quaisquer outros ramos de atividades econômicas”.
A Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos do RS (Federação RS) e a Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Rio Grande do Sul (Fehosul) contestam os dados do diagnóstico contrato pelo IPE Saúde. Dizem que o custo atual do fármaco é de R$ 9,90, acima do estimado pela Central de Serviços, e refutam a informação de que cobram R$ 201,62 pelo uso do fluconazol. Conforme as entidades, o reembolso está em R$ 164,31.
Elas questionam a qualidade do estudo e avaliam que ele pode conter inconsistências. Afirmam que, desde 2018, utilizam apenas o preço de fábrica da tabela Brasíndice, em acordo com o Ipe Saúde.
Ainda conforme o estudo contratado pelo IPE Saúde, os hospitais cobram sobre os remédios 15% de taxa de logística, o que consiste em destacar empregados e espaços para armazenamento, gestão de estoque e manipulação das medicações. O diagnóstico destaca que o percentual incide sobre valores superestimados, o que contribui para aumentar o lucro indevido em medicamentos. Nas novas tabelas, além de trazer os preços para os patamares do valor de fabricação, o Ipe Saúde propõe que a taxa de logística seja substituída por um valor fixo de, no máximo, R$ 21,75 a cada diária hospitalar. A medida irá resultar em redução de custeio.
Para a Fehosul e a Federação RS, o valor de R$ 21,75 é irrisório para a sustentabilidade de operações de alta complexidade de saúde. Elas argumentam que a taxa de logística, aplicada sobre o preço de fábrica do CMED, é praticada em diversos contratos entre hospitais e planos de saúde, inclusive do setor público, com o objetivo de garantir equilíbrio econômico-financeiro.
Outra mudança prevista nas portarias do Ipe Saúde é ressarcir os medicamentos pelo princípio ativo, e não por marcas de laboratórios, o que também auxiliará na economicidade.
O IPE Saúde argumenta que, com essas medidas, dará mais transparência, rastreabilidade e correção aos pagamentos. Não só o estudo contratado pela autarquia, mas também análises da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz) já apontavam em 2020 o repasse de valores supostamente acima dos de mercado.
Conforme documento oficial da Fazenda, naquele ano o Ipe Saúde reembolsou os prestadores de serviços com um “sobrecusto” de R$ 228 milhões em medicamentos e de R$ 116 milhões em dietas. Foram R$ 344 milhões, em um ano, de pagamentos possivelmente acima do patamar correto.
Historicamente, esse “sobrecusto” foi utilizado como um financiamento cruzado para compensar as diárias e taxas hospitalares, que acumulavam defasagem. Agora, pressionado por órgãos de controle interno e externo, o Ipe Saúde busca equalizar os valores para os patamares mercadológicos, sem distorções. A intenção é reembolsar os prestadores pelo custo dos remédios, como preveem as normas, e remunerá-los com a elevação das tabelas de serviços hospitalares.
No estudo, é afirmado que a nova tabela de medicamentos proposta pelo IPE Saúde é baseada em notas fiscais fornecidas por hospitais, clínicas e cotações de centrais de compras.
A medida faz parte do processo de reestruturação do IPE Saúde. Em etapas anteriores, houve aumento da receita a partir da elevação da contribuição dos usuários do plano e o reajuste dos honorários dos médicos que atendem os segurados.
A promotora Roberta Brenner de Moraes, da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Porto Alegre, destaca que, caso os hospitais paguem mais caro por um fármaco do que o previsto nas tabelas de reembolso do Ipe Saúde, está prevista a possibilidade de reajuste de preços. Será necessário comprovar a situação com a apresentação de nota fiscal.
- Desta forma, não resultarão prejuízos aos prestadores de serviços. As novas regras garantem a transparência, a legalidade, a fiscalização e afastam a prática do financiamento cruzado que, além de ilegal, há anos prejudica a saúde financeira da autarquia - diz a promotora, que tem inquérito civil instaurado para acompanhar e atuar no caso.
Os dados do estudo do IPE Saúde com as novas tabelas*
Medicamentos e dietas
- Faturamento dos hospitais com tabelas atuais - R$ 756,9 milhões
- Faturamento dos hospitais com tabelas novas - R$ 424,3 milhões
- Diferença de -43,94%
Materiais hospitalares
- Faturamento dos hospitais com tabelas atuais - R$ 43,3 milhões
- Faturamento dos hospitais com tabelas novas - R$ 51,7 milhões
- Diferença de +19,36%
Diárias e taxas
- Faturamento dos hospitais com tabelas atuais - R$ 357,8 milhões
- Faturamento dos hospitais com tabelas novas - R$ 705,6 milhões
- Diferença de +97,22%
Somatório geral
- Com tabelas atuais - R$ 1.592 bilhão
- Com tabelas novas - R$ 1.615 bilhão
- Diferente positiva de R$ 23,6 milhões, acréscimo de 1,49%
*Dados do estudo da Unimed Central de Serviços com base no exercício de 2022
Conforme o estudo, dos 241 hospitais credenciados ao IPE Saúde, 235 terão aumento de faturamento. Seis terão redução. São eles:
- Hospital Ernesto Dornelles -11,12%
- Hospital São Lucas (PUCRS) -3,97%
- Hospital de Clínicas de Passo Fundo -11,85%
- Hospital São Vicente de Paulo (Passo Fundo) -8,43%
- Hospital Caridade de Ijuí -19,70%
- Sociedade Beneficente Sapiranguense -9,03%
Além do sobrepreço de medicamentos, o estudo apontou outras supostas irregularidades na relação com os hospitais prestadores de serviços:
- Cobranças de insumos com registro descontinuado, cancelado ou vencido no Ministério da Saúde.
- Cobranças de insumos com comercialização ou importação suspensa pelo Ministério da Saúde.
- Cobranças de medicamentos de farmácias de manipulação sem preços previamente acordados.
- Cobranças integrais por cada paciente de medicamentos compartilhados. Exemplo: um frasco de determinado remédio é usado por três segurados. Em vez de repartir o custo, os hospitais cobrariam um tubo inteiro de cada um deles. O estudo aponta alto impacto financeiro por se tratarem de valores elevados, sobretudo na oncologia.
Categorização hospitalar
Além das novas tabelas, o IPE Saúde pretende colocar em vigor uma metodologia que divide os hospitais em seis categorias. Para estar nos níveis mais elevados, é necessário atender a critérios como atendimentos de complexidade aos segurados, disponibilidade de leitos e resolutividade. Quanto mais elevado o nível do prestador de serviço, melhor será sua remuneração dentro das novas tabelas para diárias e taxas.
Associações dizem que maiores hospitais terão prejuízo de R$ 196 milhões ao ano
A Fehosul e a Federação RS avaliam que as novas tabelas estão a contento para os hospitais de baixa e média complexidade. O problema, asseguram, é com as 15 instituições de alta complexidade, incluindo a Santa Casa de Porto Alegre e o Hospital Ernesto Dornelles, que estão entre as que mais atendem segurados do IPE Saúde. As entidades afirmam que as referências de medicamentos propostas pelo IPE Saúde estão abaixo dos preços de fábrica. E a correção das diárias e taxas hospitalares será insuficiente para compensar o alegado desequilíbrio. A estimativa das entidades é de que os 15 maiores hospitais terão prejuízo anual de R$ 196 milhões na relação com os segurados do Ipe Saúde.
O setor diz estar aberto à busca conjunta de solução, mas há muitas queixas sobre possível “falta de bom senso e de respeito com a história das instituições” por parte do governo estadual, controlador do IPE Saúde.
Para as associações, a solução é fazer correção de diárias e taxas hospitalares que seja suficiente para cobrir o alegado déficit de R$ 196 milhões e acrescentar uma margem de resultado de 12%. Esse percentual, afirmam, não se trata de lucro: é um ganho necessário para investimentos em pessoal, dissídios coletivos, tecnologia e equipamentos, mantendo o hospital atualizado e estruturado.
A margem de resultado de 12%, dizem os hospitais, existia no modelo de negócio adotado após 2018, quando houve uma readequação da relação comercial. Em 2023, essa margem já teria sido reduzida a zero em consequência de outras políticas de controle de custos implementadas pelo IPE Saúde.
As entidades tecem duras críticas à qualidade do estudo da Unimed Central de Serviços. Rebatem, por exemplo, o apontamento de que fazem uso compartilhado de determinado medicamento entre pacientes e, na hora de cobrar do Ipe Saúde, exigem o valor de um frasco cheio de cada um deles.
A Fehosul e a Federação RS listaram seis casos de remédios de uso hospitalar que, por norma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não podem ser fracionados. Se um paciente não usa toda a dose, o excedente deve ser descartado. Nestes casos, acaba sendo cobrado o custo integral de um paciente, mas sem ter acontecido o uso compartilhado.