GZH convidou o vice-presidente Hamilton Mourão e o ex-governador Tarso Genro a escreverem sobre suas expectativas com relação ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que se inicia no domingo (1º).
O limite dos erros
Hamilton Mourão, vice-presidente da República e senador eleito pelo RS
A eleição de Lula foi um revés para aqueles que acreditam na eficiência da máquina pública, na responsabilidade fiscal, no estímulo à livre iniciativa e na relação equilibrada entre capital e trabalho como pilares da retomada do desenvolvimento pelo qual o Brasil anseia há décadas. As declarações do futuro presidente, de sua equipe de transição e dos escolhidos para cargos de relevo no “novo-velho” governo apontam, sucessivamente, em sentido contrário, com aumento do peso do Estado, descontrole de despesas, desestímulo ao investimento produtivo e retrocesso trabalhista.
O Brasil estava no caminho de tripla recuperação: das graves consequências da pandemia, dos efeitos da recessão de 2016 e de décadas perdidas de não desenvolvimento, tudo isso colocado agora em suspenso pela escolha que o país fez nesta eleição presidencial.
Uma democracia não aprende somente com seus sucessos, mas avança também com os erros que comete. O revés desta eleição deve trazer os ensinamentos que façam o país retomar o bom caminho, não só pela realização das eleições vindouras conduzidas de forma transparente e imparcial, mas, principalmente, pela ação legal e legítima dos poderes constituídos e pela livre manifestação da sociedade civil, a sua grande contratante.
Ao contrário do que se assistiu nos últimos quatro anos, a um governo eleito deve ser permitido governar. É o que se espera do governo Lula: que governe. E que governe dentro da lei, da lei maior, a Constituição Federal, a começar pela forma de regime que ela estabelece, um presidencialismo com responsabilidades definidas e com prerrogativas inderrogáveis.
Os desafios do governo Lula são os mesmos colocados a qualquer governo democraticamente eleito no Brasil, resumidos no enfrentamento das enormes desigualdades do país, na integração de vastas regiões desassistidas e na defesa da soberania e do interesse nacional. Dada a dívida histórica do Brasil para com ele mesmo, são tão urgentes quanto grandiosos, sem espaço para a repetição de erros do passado.
Os erros fazem parte da vida das nações. Mas o que as diferenciam são a extensão e a duração dos erros que cometem. Como erros não ficam sem consequências, há aquelas que evitam o pior, detectando-os e corrigindo-os, e outras que se arruínam, por gerações, incapazes de mudar seu rumo. Tudo depende da qualidade de sua política, ou melhor, da maneira pela qual suas sociedades se organizam politicamente na forma de Estado.
Existem em nosso continente países que cometeram erros que lhes custaram caro. Numa latitude, temos o que errou ao longo de muito tempo, até deixar de ser próspero e culto, criando o próprio labirinto. E acima do Equador, o que errou muito em pouco tempo, dispersando sua riqueza numa democracia de fachada que não resistiu ao assédio da ideologia.
Não existe melhor instrumento de correção de erros do que a democracia. Diga-se bem, democracia que, mesmo imperfeita, como todas, seja funcional ao ponto de não se tornar uma concessão do mandatário da vez, ele mesmo temporariamente investido de poder como mera continuidade da vida política da nação.
Portanto, não é exclusivamente ao governo Lula que se coloca o desafio deste momento difícil da vida nacional. Os sinais emitidos pelos representantes da futura administração configuram, até aqui, um desastre anunciado.
Teremos no Brasil, dia 1o, uma troca de governo e não de regime, permanecendo as instituições políticas como responsáveis por traçar o limite dos erros que o Brasil não pode mais suportar.
Superar a desgraça
Tarso Genro, ex-governador do Estado e ex-ministro da Educação e da Justiça
A liberdade de expressão reclamada por extremistas na frente dos quartéis é a liberdade de defender um golpe de Estado. Golpe de Estado é crime. Os que dizem que é “um direito” pedir “intervenção militar”, bem como reclamar a prisão do presidente do Supremo, são criminosos ou ignorantes. Se o presidente do STF, aliás, não reagisse, ele incorreria no crime de prevaricação. Ninguém tem o direito de usar a “liberdade de expressão” para promover um crime, seja um golpe de Estado, seja um estupro.
Para resgatar o país do fascismo o governo Lula deve se voltar contra o projeto autoritário, timbrado na voz de um setor empresarial da direita não democrática, que jamais teve apreço à democracia liberal. Foi, aliás, com este espírito que tentaram um novo atalho golpista aberto com a deposição da presidenta Dilma. Seus parceiros viriam do extremismo de direita que – dali em diante – poderia amparar suas ambições de poder, tanto para rasgar a Constituição de 88, como para fazer o país retornar à mística ideológica da Idade Média.
O resultado da aventura foi descrito por um honesto militar, general Santos Cruz, no seu livro Democracia na Prática por um Brasil melhor que — composto — diz em síntese o seguinte: foi “a chegada ao poder de um grupo despreparado, com um (...) comportamento de seita”, que investiu “no fanatismo, na agenda destrutiva (semeando) a mentira, a desinformação, discórdia, rancor e ódio” (...) vindo de um processo que elegeu um “incapaz de mostrar um mínimo de empatia e solidariedade com a perda de tantas vidas humanas na pandemia” e que “se dispôs a politizar até mesmo medicamentos e vacinas”.
Em nenhum momento da nossa história tivemos um desgaste tão trágico como no governo que se encerra, mas a tragédia também pode ser um momento de redenção para enfrentarmos os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, que sujam a nossa democracia: Peste, Guerra, Fome e Morte. Cada um destes cavaleiros bíblicos – presentes na Profecia do Apóstolo João – reclama funções do Estado e desnuda um inconsciente coletivo doentio, de raiva e de dor. Os cavaleiros não têm origem nos céus, mas são uma alma cultivada com a cumplicidade dos vivos.
As políticas de saúde alargadas pelo SUS, para nos preparar para os próximos vírus e as próximas endemias (Peste); uma política externa em defesa da paz, que nos livre da condição cultuada até agora, de um Brasil como pária mundial (Guerra); as políticas públicas de recuperação do salário mínimo, combate à subnutrição e à miséria absoluta, disseminadas novamente no país (Fome); e as políticas de Segurança Pública – preventivas, dissuasórias e repressivas – destinadas a conter os homicídios e a criminalidade violenta, através de um projeto financiado pela União, com os Estados e os municípios (Morte) serão as tarefas estratégicas do governo Lula, que assume a Presidência num momento global de assédio ao Estado, pelo fascismo renascido.
Os Quatro Cavaleiros são apenas metáforas neutras da História e marcam o fim de um ciclo. Seu trote foi a música fúnebre destes anos de assassinato consciente da República. Agora, sem pretender “enquadrar” os variados caminhos do pensamento na sociedade, ajustando-os à razão democrática, poderemos sufocar os demônios vestidos de cavaleiros, que mentem que vêm do céu, mas sempre estiveram presentes na vida comum, semeando as desgraças e a infelicidade coletiva.